Topo

Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Aras e chefe da PF querem pôr coleira em investigações contra autoridades

[Fotografo]Supremo Tribunal Federal via Flickr[/fotografo]
Imagem: [Fotografo]Supremo Tribunal Federal via Flickr[/fotografo]

Colunista do UOL

22/05/2021 13h02

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O cerco policial ao ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) e a delação do megacorrupto Sergio Cabral contra o supremo togado Dias Toffoli provocaram ruídos inusitados nos subterrâneos de Brasília. Para compreender essas vibrações, é preciso prestar atenção em dois documentos enviados à Suprema Corte: uma ação movida pelo procurador-geral Augusto Aras e um ofício subscrito pelo chefe da Polícia Federal Paulo Maiurino.

Na ação, Aras pede que sejam barradas operações iniciadas sem a manifestação prévia da Procuradoria, como ocorreu no caso de Salles. No ofício, Maiurino informa que cogita reestruturar a PF para que investigações contra autoridades como Salles e Toffoli, com foro nos tribunais superiores de Brasília, passem pelo seu gabinete. As duas iniciativas apontam para um objetivo comum: colocar uma coleira nas investigações.

Indicado para a chefia do Ministério Público por Bolsonaro, o procurador Aras notabiliza-se pela falta de vocação para procurar. Recém-acomodado na poltrona de diretor-geral da PF sob o mesmo Bolsonaro, o delegado Maiurino convive com a desconfiança dos colegas. Parte da corporação suspeita que sua prioridade é atender não às necessidades da polícia, mas as conveniências do presidente, protagonista de um inquérito que apura no Supremo a suspeita de interferência política na PF.

Aras muda de posição com a mesma naturalidade com que troca de gravata. Quando Dias Toffoli era presidente do Supremo, mandou abrir um inquérito sigiloso para apurar ataques à Corte e aos seus ministros. Fez isso sem ouvir a Procuradoria, titular da ação penal. A então procuradora-geral Raquel Dodge tentou arquivar o inquérito. Ao assumir, Aras rasgou procedimentos da antecessora. Em manifestação oficial, disse que Toffoli "exerceu regularmente suas atribuições".

De repente, o mesmo Aras se queixa de ter sido excluído da decisão que resultou em batidas policiais e quebras dos sigilos bancário e fiscal de Ricardo Salles e de servidores do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. Houve mais do que mera exclusão. A PF recebeu ordens expressas para comunicar à Procuradoria sobre a operação apenas depois do término da ação policial. Suprema ironia: a investida contra Salles e sua turma foi autorizada por Alexandre de Morais, que é relator do inquérito sigiloso aberto por Toffoli à revelia da Procuradoria.

A ironia uiva também nos novos ventos que sopram na Polícia Federal. Em campanha, Bolsonaro surfou a onda da Lava Jato. Eleito, seduziu Sergio Moro com a fantasia de uma "carta branca". Quando o operador de rachadinhas Fabrício Queiroz ganhou as manchetes, Bolsonaro declarou em reunião ministerial que não iria esperar "foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu" ao citar a necessidade de intervir. Maiurino é um indício de que Bolsonaro interveio.

No ofício que remeteu ao Supremo, o novo chefe da PF sustenta que a conversão do seu gabinete em entreposto das encrencas que envolvem altas autoridades é necessária para a "melhor supervisão das investigações", de modo a evitar "o ajuizamento de medidas" que refletem "tão somente o posicionamento individual de autoridades policiais", mas que estão "em dissonância da posição institucional da PF". No português das ruas, todo o palavreado sofisticado do doutor pode ser resumido em duas palavras: Intervenção e controle.

O que mais espanta nos debates que sacodem os subterrâneos de Brasília é quer a forma se sobrepõe ao conteúdo. Está tudo lá nos processos. No caso de Ricardo Salles: carregamentos de madeira ilegal apreendidos nos Estados Unidos, informes de autoridades americanas, fortes indícios de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando de madeira. No caso de Toffoli: a acusação de que o ministro recebeu propina de R$ 4 milhões em troca de favores judiciais a dois prefeitos encrencados no Tribunal Superior Eleitoral.

As suspeitas contra Salles, chamado por Bolsonaro de "ministro excepcional", podem ser infundadas. A delação de Cabral contra Toffoli pode ser apenas a tentativa de um bandidaço de obter vantagens judiciais imerecidas caluniando um magistrado incorruptível. Entretanto, as tentativas de blindagem servem para estimular a suspeição, não para provar a inocência de investigados.

Aras já havia arquivado investigação contra Ricardo Salles. Por mal dos pecados, as suspeitas ressurgiram mais fortes depois que autoridades americanas levaram os lábios ao trombone. A pedido de Aras, Dias Toffolli enviara ao arquivo meia dúzia de inquéritos contra personagens delatados por Sergio Cabral. Agiu no escurinho do sigilo judicial. Cabral voltou à carga, dessa vez atirando para cima. Com Toffoli na alça de mira, o Supremo já questiona até a legitimidade da PF para firmar acordos de delação. Algo que a própria Corte autorizou.

Houve um tempo em que os crimes atribuídos a poderosos no Brasil acabavam sempre em impunidade. Nada acima de um certo nível de poder e renda era tão grave que justificasse o desconforto de uma exposição pública, muito menos de uma punição. A sucessão de escândalos, um se sucedendo ao outro, tornou a sociedade brasileira menos complacente. Já não se admite que os governos e o Judiciário exibam uma transparência de vidro fumê.

- Atualização feita às 18h14 deste domingo (23): A Procuradoria-Geral da República emitiu nota que contesta o texto acima. Pressionando aqui, você chega ao documento.