Topo

Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Projeto de novo Código Eleitoral é feito de descaramento e insensatez

Colunista do UOL

04/08/2021 01h39

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Impulsionado por Arthur Lira, o réu que preside a Câmara, o projeto de lei que institui um novo Código Eleitoral é mais uma evidência de que o interesse público encontra-se indefeso no Congresso. A proposta, prestes a ser votada pelos deputados, é feita de dois elementos muito comuns na política: descaramento e insensatez.

As mudanças são descaradas porque tornam o processo eleitoral menos transparente e mais suscetível às fraudes. São insensatas porque os parlamentares voltam a testar os limites da paciência alheia dias depois de armar uma emboscada contra o bolso do brasileiro, triplicando o valor do fundo eleitoral que financiará as eleições de 2022. A coisa para saltou R$ 5,7 bilhões.

Os partidos sempre foram empreendimentos financiados pelo déficit público. Mas o dinheiro do contribuinte já não faz escala na caixa registradora de empreiteiras e de empresas fornecedoras do governo. A verba escorre diretamente do Tesouro Nacional para as arcas das legendas. É nesse contexto que os congressistas armam a segunda armadilha contra a carteira do cidadão em dia com suas obrigações tributárias.

Além do fundo eleitoral, renovado a cada dois anos, os 33 partidos políticos em atividade no Brasil são financiados pelo fundo partidário, que distribui às legendas cerca de R$ 1 bilhão anualmente. O novo código amplia as possibilidades de utilização dessa verba e dificulta a fiscalização. As legendas poderão realizar qualquer tipo de gasto —de propagandas políticas à compra de aviões e imóveis. E poderão contratar empresas de auditoria para ajeitar as contas antes de submetê-las à apreciação da Justiça Eleitoral.

Como se fosse pouco, o projeto coloca, por assim dizer, uma venda nos olhos dos técnicos da Justiça Eleitoral, limitando-lhes o campo de visão. A análise das contas ficará restrita à verificação de formalidades como a identificação de eventuais fontes de financiamento vedadas. O prazo para a análise das contas cai de cinco anos para dois anos, o que favorece a prescrição dos malfeitos.

Há mais: num dos seus artigos, o projeto da Câmara proíbe a divulgação de pesquisas de intenção de voto na véspera e no dia das eleições. Em bom português, trata-se de censura. Sonega-se ao eleitor a possibilidade de ajustar o seu voto na reta final. No escurinho dos partidos, os políticos continuarão dispondo de pesquisas. Redirecionarão estratégias. Levarão notícias falsas às redes sociais. A novidade é inconstitucional. Se aprovada, não resistirá a um recurso dos institutos de pesquisa ao Supremo Tribunal Federal.

Há muito mais: o novo código passa a lei da ficha limpa a sujo, suavizando as punições, retira recursos de candidaturas de mulheres e de negros. E descriminaliza práticas como a boca de urna, o transporte de eleitores e os comícios realizados no dia da eleição. Instituiu-se uma espécie de vale-tudo. Crimes eleitorais que poderiam levar à cadeia passam a ser punidos com multas. Ilegalidades serão transformadas em bons negócios.

A revisão da legislação eleitoral foi um compromisso assumido pelo líder do centrão Arthur Lira na campanha à presidência da Câmara. Ecoando uma queixa muito comum entre os parlamentares, Lira acusa o TSE de legislar por meio de resoluções. Alega que é preciso "sistematizar" as leis eleitorais, para eliminar dubiedades ou lacunas que dão margem às interpretações da Justiça Eleitoral.

Em matéria de legislação eleitoral, as regras nem sempre são ideais. Mas costumam ser menos perigosas do que a imaginação dos reformadores do Congresso. O vocábulo "sistematização" é, por vezes, eufemismo para piorar o que já é imperfeito.

O grupo de trabalho constituído por Lira em fevereiro para preparar as mudanças era composto de 15 deputados, dos quais oito são protagonistas de processos no Tribunal Superior Eleitoral. Quer dizer: 53% dos deputados selecionados para reformar as leis que regem as eleições figuram como parte (ativa ou passiva) em processos que tramitam na Justiça Eleitoral. Deu no que está dando.