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Existência de Brennand ganha novo sentido: a melhoria do sistema carcerário
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Num áudio enviado por WhatsApp para uma de suas vítimas em maio do ano passado, o empresário Thiago Brennand desdenhou da hipótese de ser preso: "Vão me meter na cadeia, ó meu Deus!" Quatro meses depois, Brennand fugiu para os Emirados Árabes. Durante a fuga, seu prontuário engordou.
As acusações de estupro, lesão corporal, cárcere privado e tortura resultaram em oito denúncias e cinco pedidos de prisão preventiva. Neste sábado, concluído o processo de extradição, Brennand desembarca em São Paulo para tornar-se, finalmente, hóspede do sistema carcerário nacional. Alvíssaras!
Uma das consequências que ninguém está examinando desta aparente disposição das autoridades brasileiras de punir Brennand pelos crimes em série que praticou contra mulheres é a perspectiva de melhoria das cadeias. O aperfeiçoamento viria a partir de uma qualificação progressiva da população carcerária.
Costuma-se dizer que a Justiça é cega. Bobagem. A verdade é que a Justiça brasileira enxerga mal. Sofre de esotropia. Ou estrabismo convergente. O eixo visual de um olho se desloca em direção ao do outro, provocando uma disfunção chamada diplopia, que é a visão dupla de um mesmo objeto.
Pela Constituição, todos são iguais perante a lei. Mas o Judiciário vê as mesmas leis em duplicidade. Por isso, vigora no Brasil uma espécie de ilicitocracia na qual, acima de um certo nível de poder e renda, nenhuma ilegalidade justifica uma reprimenda. Muito menos a prisão.
Disso resultou a percepção de que o problema das prisões nesta terra de palmeiras e sabiás é a superlotação de pretos, pobres e putas. Engano. O verdadeiro problema é a ausência de bandidos de grife atrás das grades. Apenas de raro em raro, quando um criminoso da elite esquece de maneirar, a Justiça ajusta suas lentes. É o que sucede no caso de Brennand.
É preciso ponderar todas as hipóteses, das melhores às piores. Na pior das hipóteses, o poder econômico de Brennand comprará os bons préstimos das melhores bancas advocatícias. E o preso não tardará a obter um habeas corpus para responder aos processos em liberdade.
Na melhor das hipóteses, a disposição punitiva seria levada às últimas consequências, convertendo a cana de Brennand numa experiência longeva. Consumando-se as condenações, a prisão preventiva evoluiria para o cumprimento de penas estabelecidas em sentenças definitivas.
Prevalecendo a hipótese mais otimista, pode-se antever a deflagração de um debate edificante. Se a discussão for bem conduzida, o Brasil buscará uma resposta para uma interrogação crucial: a elite branca também vai para a cadeia nos países desenvolvidos por que as prisões são melhores ou as cadeias são melhores por que a elite também as frequenta?
A conjuntura nunca foi tão propícia para esse tipo de debate. Pintou um clima no Brasil entre a anormalidade e o cafajestismo. Nunca se falou tanto no país em Deus, pátria e família. O festival de idolatria política e fanatismo religioso que assola o cotidiano nacional permite um inusitado vislumbre sobre o futuro primitivo da nação.
É como se de repente os brasileiros caíssem nos anos 30 do século passado. Metade da nação tenta degolar a outra metade a fim de estabelecer se a sociedade deve ou não praticar barbaridades em nome de Deus, a serviço da pátria e em defesa da família. Seria reconfortante converter os vapores dessa cruzada autofágica em energia capaz de eletrificar uma discussão sobre a desigualdade que torna o sistema carcerário tão seletivo.
De repente, a existência oca de Thiago Brennand ganhou novo sentido: a melhoria do sistema carcerário. Não se deve esperar que a chegada do personagem à cadeia produzirá uma qualificação instantânea das prisões, com a criação de canas executivas, com penitenciárias dotadas de quartos privativos, lavabos e salas para reuniões. Mas a manutenção de figura tão ilustre atrás das grades pode resultar em cenas inusitadas.
Imagine-se, por exemplo, o primeiro motim no refeitório de um presídio frequentado por gente do nível de Brennand. Os presos de grife, revoltados com a abstinência de charutos e com a ausência de bons vinhos no cardápio, bateriam na mesa e formulariam suas exigências: "Petrus, Château Latife..."
Se atingir esse estágio, o Brasil talvez abandone a condição de mais antigo país do futuro do mundo.
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