Gonet falou como procurador de uma república aleatória de Marte
O neandertal dispunha de caixa craniana maior, mas não tinha a linguagem sofisticada do homem contemporâneo. Um dos objetivos da evolução era justamente dar voz à humanidade, nome às coisas e um enredo para o universo. O diabo é que o ser humano inventou a tergiversação. Na sabatina do Senado, Paulo Gonet abusou do estratagema da embromação para atingir o desagradável subterfúgio de falar por mais de dez horas sem dizer as coisas.
A desconversa do novo procurador-geral da República atingiu o ápice nos instantes em que foi questionado sobre como pretende lidar com o inquérito das fake news. "Não sei o que está acontecendo ali", declarou a alturas tantas. Revelando-se um procurador desprovido de curiosidade, acrescentou: "Não me caberia buscar conhecer esse inquérito antes de ser nomeado".
A manifestação é enganosa, pois Gonet não precisaria conhecer o conteúdo para dizer meia dúzia de palavras sobre a forma do inquérito sem-fim. Sob críticas, foi aberto em 2019 por Dias Toffoli, à revelia da Procuradoria. Tinha o objetivo de apurar ataques ao Supremo. Graças a Bolsonaro e suas falanges, virou trincheira de defesa da democracia. Não fosse a necessidade de fazer média com Alexandre de Moraes, um dos padrinhos de sua indicação, Gonet poderia ter dito que, em algum momento, a anormalidade processual que a insanidade do bolsonarismo normalizou precisa ter fim.
De resto, o grande perigo da meia verdade é o orador dizer exatamente a metade que é mentirosa. Gonet não desconhece 100% do inquérito das fake news. Como representante da Procuradoria no TSE, manuseou em 2021 provas compartilhadas pelo Supremo em ação que pedia a cassação de Bolsonaro por disparar mentiras via WhatsApp na sucessão de 2018. Manifestou-se contra a cassação.
Como o sapo de Guimarães Rosa, Gonet não pulou entre a desconexão e a imprecisão por boniteza, mas por precisão. Quando quis, soou claro. Ao ouvir o senador Alessandro Vieira dizer que Gilmar Mendes, outro que o apadrinhou junto a Lula, é "carente do mínimo pudor ético", Gonet saltou: "O ministro Gilmar é honrado, pessoa dedicada ao bem."
Ficaram nítidas três coisas coisas: 1) Gonet é leal aos amigos. 2) Chega ao topo da carreira como procurador-geral de uma república aleatória de Marte. 3) A tergiversação faz sucesso no Senado. Gonet precisava de 41 votos. Havia em plenário 77 senadores. Ele obteve o aval de 65 — ou 84,4% dos presentes.
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