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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro chama educador de burro para ocultar caos no comando da Educação

Colunista do UOL

16/12/2019 12h47

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Jair Bolsonaro chamou o educador Paulo Freire de "energúmeno" - segundo o dicionário Houaiss, um ignorante, boçal, imbecil - e relacionou, nesta segunda (16), a filosofia de ensino de um dos mais respeitados pedagogos do mundo ao baixo resultado que o Brasil teve no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Também defendeu o fim do apoio à TV Escola por seu ministro Abraham Weintraub, afirmando que ela "deseduca", que é "totalmente de esquerda" e que propaga "ideologia de gênero".

Cada vez que xinga Freire, o presidente provoca orgasmos em sua militância que, como ele, entende tanto da filosofia de ensino do educador quanto de mecânica de foguetes espaciais e de engenharia genética. Como papagaios, repetem exaustivamente as críticas de militares da ditadura e de gurus e influenciadores da extrema direita sobre o pernambucano. Esses sim compreendem o poder da concepção de Paulo Freire para que as pessoas formem-se nas letras e sejam cidadãs de fato. E, por isso, desejam enterrá-lo.

A ideia é tão simples quanto genial. Consiste - grosso modo - a usar a realidade dos alunos para ensina-los. Para aprender a palavra "tijolo", discute-se o que ela representa para todos - quem sabe fazer um tijolo, quem o compra, quem o vende, quem lucra com ele. Para entender a palavra "trabalho", pode-se incentivar o aluno a conhecer a CLT, seus direitos e deveres. Isso encara a educação não apenas como um processo técnico de passar dados, mas como um caminho para que todos possam exercer sua cidadania plena. Por isso, é visto como subversivo por aqueles que preferem um povo que apenas diga amém.

Em abril, publiquei uma reportagem de Marcelle Souza, da Repórter Brasil, aqui no blog, contando a história do povoado de Angicos, no Rio Grande do Norte, com altas taxas de pobreza e de analfabetismo. Nele, em apenas 40 horas, um grupo de professores liderado por Paulo Freire ensinou 300 adultos a ler e a escrever e fomentou a percepção sobre os direitos trabalhistas e o direito ao voto. Era 1963. Como houve o golpe no ano seguinte, os militares não deixaram que a ideia fosse implementada no plano nacional de alfabetização. Freire foi demitido e teve que se exilar para não ser morto.

O ódio de Bolsonaro contra o educador é antigo. Ele já disse que iria usar um "lança-chamas no MEC para expulsar Paulo Freire lá de dentro". O presidente pode não entender o que ele defendia, mas sabe que seu resultado significa um povo mais consciente e difícil de ser manipulado. E isso é algo que alguém que acredita que Messias não é só um sobrenome não pode admitir. Culpar o educador pela situação da educação é como culpar o brigadista que apaga incêndios pelo fogo na floresta.

Freire é nosso acadêmico mais citado e nosso professor mais traduzido para outras línguas. Sua concepção de ensino é respeitada por professores em todo o mundo. Por aqui, apesar de criticado, ajudou a reduzir o analfabetismo após a redemocratização.

Mas trazer a realidade dos alunos para a sala de aula não é a única ferramenta para termos educação de qualidade. O Brasil conta com uma formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais. Assiste a roubo, ausência e baixa qualidade da merenda escolar. Paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente em todas as escolas.

E mesmo com essa situação, Jair Bolsonaro teve a irresponsabilidade de deixar a cadeira de ministro da Educação vaga desde que assumiu o mandato. Indicou dois gerentes que serviram para desperdiçar tempo do país, substituindo a busca pela melhoria da educação básica e superior por debates que reescrevem o passado.

Por isso, a frase mais paradigmática do presidente, nesta manhã de segunda, não foi o xingamento a Freire ou as críticas à TV Escola, mas dizer que essas ações tomadas agora "daqui a cinco, dez, quinze anos, vai ter reflexo".

Como aqui já disse, Bolsonaro usa a área da educação para implementar um "Ministério da Verdade", como no livro "1984", de George Orwell. Quer castrar a liberdade de ensino com uma intervenção no significado e no sentido da educação pública, acabando com instrumentos que democratizam o conhecimento. Ricardo Vélez e, depois, Abraham Weintraub cumprem esse papel, declarando guerra às liberdades conquistadas desde a Constituição de 1988. Afinal, para a extrema direita, a sociedade está corrompida e degradada por conta delas, precisando de refundação. Buscam sua ressignificação.

Esqueçam o desvio do orçamento da educação para pagamento de juros da dívida pública, esqueçam a incapacidade administrativa e gerencial, o sucateamento e a falta de apoio para a formação dos profissionais, os salários vergonhosamente pequenos e atrasados, a falta de planos de carreira, a ausência de infraestrutura, de material didático, de merenda decente, de segurança para se trabalhar. Esqueçam os projetos impostos de cima para baixo que fecham escolas e desfazem comunidades escolares. Esqueçam o gás lacrimogênio e as balas de borracha contra professores que fazem greve.

Para o presidente, o problema da educação são mamadeiras de piroca fictícias, ilustrações de pipius e xaninhas em cartilhas voltadas a explicar a adolescentes cuidados de saúde com o próprio corpo e a presença de conteúdo didático destinado a explicar aos estudantes que não se deve bater em mulheres, homossexuais e transexuais.

E a culpa da situação da educação no Brasil é de Paulo Freire, da TV Escola, de estudante vagabundo (Bolsonaro disse, na última quinta (12), que estudante "faz tudo, menos estudar") ou "imbecil" e "idiota útil" (como se referiu aos jovens que protestavam pela educação em maio). Além, é claro, de professor "comunista".

Como também já disse aqui, burrice não é desconhecer a norma culta da língua. Burrice é menosprezar o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado. Burrice é encarar preconceitos violentos como sabedoria. Burrice é tentar destruir, de forma violenta, o conhecimento que ameaça jogar luz sobre a própria burrice. A burrice, como manifestação da negação do conhecimento, avança quando os governantes acham possível construir uma sociedade melhor jogando na lata do lixo os instrumentos usados para refletirmos sobre seus erros e acertos.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Marx, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente. A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu.

E hoje vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes frente à livre circulação do conhecimento humano e a possibilidade de seu aprendizado.

Não estou comparando nossa sociedade com a de movimentos totalitários. Apenas dizendo que a burrice é atemporal e universal.