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Leonardo Sakamoto

Tutelado como presidente, Bolsonaro assume papel de sabotador da República

Enterro de Denis Queiroz da Silva de 34 anos, vítima confirmada do Covid-19, no Cemitério Parque Tarumã na tarde sexta-feira (10) em Manaus  - EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO
Enterro de Denis Queiroz da Silva de 34 anos, vítima confirmada do Covid-19, no Cemitério Parque Tarumã na tarde sexta-feira (10) em Manaus Imagem: EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

12/04/2020 12h32Atualizada em 14/04/2020 00h03

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A carreata acompanhada de microprotestos pedindo o fim das medidas de isolamento social em São Paulo - que atrapalhou ambulâncias na avenida Paulista, xingou a China e atacou o trabalho da imprensa - representa bem o que sobrou a Jair Bolsonaro com a crise do coronavírus. Tolhido pelo Ministério da Saúde e tutelado por militares do seu próprio governo, contido pelo Supremo Tribunal Federal e corrigido pelo Congresso Nacional, a ele restou o posto de Sabotador-Geral da República.

Age como se estivesse em uma guerrilha, lutando uma batalha assimétrica contra o país que - contraditoriamente - o elegeu para governar. As postagens de seu entorno mostram um alto nível de paranoia e teorias da conspiração, mas até agora a única pessoa que apresentou provas concretas de estar conspirando contra os brasileiros foi o próprio Bolsonaro.

Provavelmente imunizado após ser um dos membros do "Bonde do Corona", a comitiva de sua viagem aos Estados Unidos que foi um dos vetores de infecção do vírus em Brasília, com mais de duas dezenas de contaminados, ele junta aglomerações nas ruas para provocar rachaduras na barreira sanitária criada para reduzir a velocidade de infecção dos vírus. Pragmático, aposta que uma queda acentuada na economia será mais danoso para seu mandato e suas pretensões eleitorais do que alguns milhares de mortos.

Com influência limitada no mundo real, passou a se dedicar apenas ao "Ministério da Verdade" - atividade que, como alertei há um ano, ele desempenhava paralelamente. Apresentado no romance "1984", de George Orwell, isso tem a função de ressignificar a história e qualquer notícia que seja contrária ao próprio governo.

Sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, fundamental para a eleição de 2018, não tem a mesma força de antes. Por conta disso, incorporou ao arsenal constantes pronunciamentos à nação em cadeia de rádio e TV e entrevistas, falando com uma parte da classe média baixa e grupos religiosos que ainda sustentam seu governo.

O "Ministério da Verdade" de Bolsonaro aponta para uma pandemia e diz que não há nada lá com o que se preocupar. Pede para isolarmos idosos sem dizer como isso será feito em favelas. Dizem que a imprensa e as instituições, como o Congresso e o STF, é que estão jogando o país no abismo - quando, na verdade, é o contrário. Enquanto isso, seus ministros atacam a China, principal parceiro comercial brasileiro e fonte de equipamentos hospitalares.

O presidente reclama das dificuldades econômicas a trabalhadores e empresários, dizendo que isso é a prova de que todos devem voltar ao trabalho. Mas esconde que foi a demora de seu governo em garantir o pagamento da renda básica de R$ 600, o atraso na organização de medidas para garantir salários e empregos e a insuficiência de ações para proteger micro e pequenos empresários que transformaram a pandemia em pandemônio.

A culpa pelo presidente estar escanteado de parte do processo, ao contrário do que apontaram seus fiéis escudeiros, nos microprotestos deste sábado, não é de outros políticos que querem vê-lo pelas costas. Adversários tentando minar governos sempre vão existir, claro. Mas, neste caso, a culpa é do próprio Bolsonaro que, diante do grande teste de sua Presidência, refugou.

Ele demonstrou que uma pessoa cunhada para a guerra é incapaz de negociar pacificamente e resolver conflitos. Isso não tem a ver com a formação militar do capitão reformado, uma vez que os generais da reserva que fazem parte da sua equipe demonstram ser muito, mas muito mais moderados e afeitos ao diálogo que ele.

Mas um político eleito com uma narrativa antissistêmica, contra tudo o que está aí, não consegue conduzir o país em tempos de união em torno de uma causa comum - salvar vidas e empregos. Ele precisa de inimigos, reais ou imaginários. Tendo passado três décadas defumando no conflito, a ponto de dizer que uma deputada não "merecia ser estuprada", seria ele capaz de agir de forma republicana?

Bolsonaro poderia aproveitar este momento para tentar refazer a imagem de líder, como tenta Donald Trump. Preferiu entrar para a história pela porta dos fundos.

Por sorte dele, tem 33% de aprovação e 40% acreditam que ele mais ajuda que atrapalha - mesmo que, ao mesmo tempo, 76% afirmem que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que bate de frente com o presidente, vem fazendo a coisa certa. Mas apenas uma ínfima parte desses 33% tem coragem de ir para a rua passar vergonha.

O problema é que medidas de isolamento devem ser seguidas pela coletividade para serem eficazes. Ou seja, a seleção natural não vai seguir seu curso levando embora apenas as pessoas que cismam que o "coronavírus não existe" - como bradavam discursos na avenida Paulista em um dos microprotestos deste sábado.

Pelo contrário, parte dessas pessoas, como o presidente, conta com dinheiro para se internar em hospitais com mais acesso a recursos. Podem falar bobagem que, depois, a sociedade vai tratar de salvá-los dela própria. O problema é a tragédia que transmitirão até lá para seus próprios funcionários, caso os obriguem a voltar ao trabalho. Mas também médicos, enfermeiros, empregadas domésticas, garis, porteiros, zeladores, motoristas de táxi, entregadores de comida, atendentes de farmácia, caixas de supermercado.

Isso sem contar da parte dos manifestantes que terá que esperar nas longas filas nos hospitais públicos quando perceberem que o tal do vírus, veja só, não era mentira.