Relator da ONU alerta que pandemia deve aumentar casos de trabalho escravo
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"O severo efeito socioeconômico da pandemia de covid-19 provavelmente irá aumentar o flagelo da escravidão moderna, que já afetava mais de 40 milhões de pessoas."
A declaração é do relator especial das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, o japonês Tomoya Obokata. Ele cobrou de governos que melhorem a proteção dos mais vulneráveis, que estão em situação ainda mais precária por conta do aumento do desemprego relacionado ao fechamento de empresas em meio ao coronavírus.
"Durante a atual emergência sanitária, exorto os Estados a identificar as pessoas que enfrentam o maior risco de cair em trabalhos exploradores e aumentar sua proteção por meio de políticas de salvaguarda", afirma Obokata. "Se nenhuma ação for tomada nesse sentido, existe o risco de que significativamente mais pessoas sejam empurradas para a escravidão agora e no longo prazo."
Para ele, embora bilhões de trabalhadores tenham sido afetados pela covid-19, o impacto é muito mais forte para quem está na economia informal, além de diaristas e temporários, muitos dos quais mulheres e migrantes. E ressalta que devido à falta de apoio adequado por parte de governos, crianças enfrentam um risco maior de exposição às piores formas de trabalho infantil.
"A identificação e reabilitação das vítimas de formas contemporâneas de escravidão é difícil devido à natureza clandestina e oculta desses crimes. E provavelmente se tornará ainda mais desafiadora, pois os Estados estão transferindo recursos de proteção para combater a pandemia", afirmou Obokata.
Escravidão no Brasil hoje
O Brasil rememora, nesta quarta (13), os 132 anos da Lei Áurea. E, nesta sexta, celebra os 25 anos de seu sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo.
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do CPB, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde 1995, mais de 54 mil pessoas foram resgatadas por grupos especiais de fiscalização móvel, coordenados por auditores fiscais do trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regional do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.
Trabalhadores têm sido resgatados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis, entre outras atividades.
20 de novembro
O país nunca conseguiu incluir e integrar a população negra, nem reparar a dívida histórica. Os descendentes daqueles trabalhadores escravizados do final do século 19 continuam a apresentar indicadores sociais e econômicos muito abaixo dos brancos. Por exemplo, recebem menos pela mesma função de acordo com dados da ONU e do IBGE.
Uma análise dos relatórios de fiscalização do governo federal entre 1995 e hoje aponta que há muito mais negros entre os trabalhadores libertados da escravidão contemporânea do que sua proporção na sociedade, dada à vulnerabilidade histórica desse grupo. Pois, se por um lado, o trabalhador escravizado contemporâneo é o pobre, por outro, o pobre tem cor de pele. E ela é principalmente negra no Brasil.
Por isso, os movimentos negros nos explicam que o 13 de Maio remete a uma abolição imperfeita e tardia, adiada ao longo da segunda metade do século 19 pelo poder econômico. Enquanto isso, o dia 20 de novembro, escolhido para celebrar a Consciência Negra e o protagonismo de mulheres e homens negros, é uma data criticada por muitos daqueles que dizem não haver racismo no Brasil.
A mudança desse quadro não é fácil. Representativo das dificuldades é a uma declaração do então pré-candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro. Durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, ele foi questionado sobre a dívida que a sociedade tem com negros e negras por conta dessa abolição malfeita e, consequentemente, a perpetuação das desigualdades e injustiças sociais. Foi categórico: "Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida".
Para além da luta contra o nosso racismo estrutural e da batalha para manter de pé o sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo, este momento, portanto, abre um novo desafio. É fundamental proteger o ensino de História nas escolas contra a tentativa dos que querem que estudantes saibam a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não seja instigado a pensar por que o 13 de maio de 1888 não permitiu que negros e negras desfrutassem dos mesmos direitos dos brancos. E que não foi a canetada de uma governante que aboliu a propriedade de um pessoa sobre outra, mas séculos de batalhas e de resistência.