Topo

Leonardo Sakamoto

Médicos protestam em SP contra "desmonte na Saúde e escalada autoritária"

Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde realizam ato pela democracia e contra desmonte na Saúde - Divulgação
Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde realizam ato pela democracia e contra desmonte na Saúde Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

07/06/2020 12h27

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Um protesto de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde "contra as ações de desmonte da Saúde durante a pandemia e a escalada autoritária de Jair Bolsonaro" foi realizado, na manhã deste domingo (7), em frente à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O ato chegou a fechar duas faixas da avenida Doutor Arnaldo, na zona Oeste da capital paulista.

"É um basta. Percebemos que o silêncio ajuda nessa escalada. Não dá para se omitir em um momento em que a democracia está sendo constantemente atacada e o Ministério da Saúde desmontado. Mais do que isso: estamos vendo uma política higienista do governo", afirmou à coluna Lívia Ciaramello Vieira, médica residente de psiquiatria da USP e uma das organizadoras do ato.

Os organizadores dizem saber que não existe 100% de segurança contra infecções, mas que seguiram exemplos bem-sucedidos de protestos em pandemias e atuaram pelo distanciamento social, o uso de máscara e de outros equipamentos de proteção individual.

"Neste momento, é pior para o Brasil que a gente não se posicione, deixando o governo desmontar o Ministério da Saúde, do que realizemos um protesto", explica.

O movimento começou com o surgimento de um grupo de WhatsApp de médicos do Hospital das Clínicas e do Hospital Universitário, pertencentes à universidade, que reuniu 250 profissionais. A ele, agregaram-se enfermeiros, psicólogos e outros profissionais.

"As manifestações de movimentos antirracistas, antifascistas e de torcidas organizadas já tinham nos dado força para nos mobilizarmos. Mas Bolsonaro acabou alimentando ainda mais o descontentamento após o Ministério da Saúde incentivar a desinformação, escondendo dados sobre casos e mortos pela covid-19. Isso é muito preocupante e afeta o trabalho da comunidade médica", afirma a Lívia Ciaramello Vieira.

Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde protestam em São Paulo - Divulgação - Divulgação
Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde protestam em São Paulo
Imagem: Divulgação

A coluna conversou com outros médicos que participam do ato. Em comum, a mensagem de que o presidente está cometendo um descaso muito grande com a vida dos brasileiros com seu comportamento frente à doença. Outros lembram que, mesmo antes da pandemia, já havia mobilização por conta do atraso sistemáticos às bolsas pagas aos residentes - que mantém hospitais públicos funcionando em todo o país.

"Negacionismo da ciência"

O grupo divulgou um manifesto também neste domingo. Segundo ele, "o Hospital das Clínicas, que teve toda sua estrutura reorganizada para ser o principal centro de acolhida de pacientes graves na cidade de São Paulo, apresenta no momento 90% dos leitos de UTI ocupados por pacientes com a covid-19 e expectativa é de preencher todos os leitos nas próximas semanas".

De acordo com o texto, "caberia ao líder do país entender a dimensão do problema e coordenar representantes de diversos setores como saúde, economia, justiça, planejamento, cidadania". Mas "este não é o papel exercido pelo presidente Jair Bolsonaro". E critica a forma como o mandatário menosprezou a pandemia e incentivou a aglomeração de pessoas.

Também reclama que o governo não garantiu condições dignas de trabalho aos profissionais de saúde. "Estamos pressionados a desempenhar cuidados em um cenário de múltiplos carecimentos, com os serviços impactados pelo afrouxamento da medida de distanciamento social. Trata-se de um descaso do governo junto àqueles que hoje dedicam seus dias no combate à doença."

E acusa Bolsonaro de higienismo e eugenia: "Além do negacionismo da ciência, existe uma ação de se 'purificar' a população dos fracos e vulneráveis".

Médicos também têm aderido a manifestações nos Estados Unidos, que estão sendo palco de protestos raciais em grandes cidades, como Nova York, Los Angeles, Chicago, Dallas, Atlanta, após George Floyd, um homem negro de 46 anos, ter sido torturado e morto por um policial branco em Minneapolis à luz do dia.

Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde criticam censura nos dados sobre a pandemia pelo Ministério da Saúde - Divulgação - Divulgação
Médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde criticam censura nos dados sobre a pandemia pelo Ministério da Saúde
Imagem: Divulgação

Leia a íntegra do manifesto abaixo:

Manifesto dos profissionais da saúde contra o governo e a favor da democracia

Nos últimos meses vivemos a maior crise sanitária de nossa história recente, a pandemia da covid-19. Até o dia de hoje, são mais de 6 milhões de casos confirmados e aproximadamente 379 mil mortes pelo mundo. No Brasil, superamos a marca dos 30 mil mortos nesta semana, com mais de 500 mil casos confirmados, fora os casos não computados pela constatada subnotificação. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, que teve toda sua estrutura reorganizada para ser o principal centro de acolhida de pacientes graves na cidade de São Paulo, apresenta no momento 90% dos leitos de UTI ocupados por pacientes com a Covid-19 e expectativa é de preencher todos os leitos nas próximas semanas.

Neste contexto de mortes em massa, escassez de recursos (disponibilidade de equipe de saúde, materiais de EPI, leitos de enfermaria e leitos de UTI), dificuldade de acesso de doentes crônicos aos serviços de saúde, desemprego em ascensão, maior vulnerabilidade da população de baixa renda e incertezas na duração da pandemia; o Brasil carece de uma liderança. Caberia ao líder do país entender a dimensão do problema e coordenar representantes de diversos setores como saúde, economia, justiça, planejamento, cidadania, entre outros.

Somente com coordenação e coerência seria possível o enfrentamento de fato da pandemia que assola o mundo todo. Este não é o papel exercido pelo presidente Jair Bolsonaro.

Desde as primeiras notificações, o presidente difundiu de maneira ativa por vários meios de comunicação - inclusive oficiais - que a covid-19 era apenas "histeria", "resfriadinho" ou "gripezinha", minimizando sua gravidade. Da mesma maneira enérgica, sempre incentivou a população a sair às ruas, frequentar escolas, cultos religiosos e jogos de futebol. Sempre divergiu das recomendações das autoridades de saúde, como a Organização Mundial da Saúde e o próprio Ministério da Saúde (antes encabeçados pelos ex-ministros Henrique Mandetta e Nelson Teich), refutando, em suas fake news, estudos científicos que comprovavam a eficácia do isolamento social e o risco à segurança dos pacientes de usarem a cloroquina indiscriminadamente. Seus argumentos sempre foram ideológicos e nunca baseados em evidência.

Infelizmente não houve por parte dele a mesma inclinação para garantir novos leitos de enfermaria e de UTI, buscar novas fontes de kits diagnósticos - com novos laboratórios para análises químicas - incentivar o desenvolvimento de ventiladores mecânicos de produção nacional, coordenar com os governadores dos estados um planejamento organizado de isolamento e possibilidade de reabertura. Aos profissionais da saúde, não foram garantidas condições dignas de trabalho. Estamos pressionados a desempenhar cuidados em um cenário de múltiplos carecimento, com os serviços impactados pelo afrouxamento da medida de distanciamento social. Trata-se de um descaso do governo junto àqueles que hoje dedicam seus dias no combate à doença. A dimensão de tal descaso chega ao ponto do governo de Jair Bolsonaro não ter sido capaz nem ao menos de garantir o pagamento das bolsas-salário dos residentes em saúde, médicos e multiprofissionais que possuem uma carga horária de trabalho de 60 horas semanais, muitas vezes ultrapassadas. Isto sem falar no fato de estarmos há mais de duas semanas sem um ministro da saúde, apenas com um interino que nem sequer é profissional da saúde.

A agenda de prioridades do presidente não inclui o combate à pandemia, pelo contrário. De maneira direta ou indireta sua política tem um efeito de desassistir aos idosos, pobres e doentes crônicos, facilitar a disseminação do vírus pelo país, promover imunidade de rebanho de maneira drástica às custas de milhares de vidas. Segundo o presidente, "é o destino de todo mundo". Além do negacionismo da ciência, existe uma ação de se "purificar" a população dos fracos e vulneráveis. Vale lembrar que a pandemia afeta as pessoas de formas diferentes, tanto na economia quanto na possibilidade de contrair o vírus SARS-CoV2 e de receber um tratamento adequado. De acordo com um boletim epidemiológico de São Paulo de 30 de abril, pessoas negras tem 62% a mais de chances de morrer pela Covid-19 do que as brancas. Entendemos, assim o que significa a fala do presidente a respeito das mortes que ocorrerão: "e daí? ". Há pouco mais de 80 anos um governo (inicialmente) legitimamente eleito na Alemanha promoveu a mesma política.

Por estes motivos, nós profissionais da saúde nos manifestamos contra o governo de Jair Bolsonaro e favor da manutenção da democracia, bem como independência dos três poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo). Somos contra as manifestações de autoritarismo do presidente, a favor da saúde universal gratuita e de qualidade, da valorização dos profissionais da área, contra o desmonte do ministério da saúde em meio à pandemia, a favor da ciência e contra o racismo e a desigualdade no acesso à saúde.