Covid: Aras recomenda que Ministério Público não questione ações de governo
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Resumo da notícia
- Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou recomendação que promotores e procuradores encararam como tentativa de "mordaça".
- Assinado por Augusto Aras e pelo corregedor do MP, Rinaldo Reis, sugere que seja respeitada a autonomia administrativa de gestores em fiscalizações.
- O texto diz que, no caso de falta de consenso científico, é legítimo o gestor escolher uma entre as posições díspares.
- Procuradores e promotores afirmam que falta de consenso não é salvo-conduto para governantes adotarem políticas que fazem mal ao povo durante a covid.
Em meio à pandemia de coronavírus, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou, na última sexta (19), uma recomendação vista por promotores e procuradores como tentativa de "mordaça". De acordo com as associações que os representam, o documento limita a fiscalização de gestores públicos durante a crise trazida pelo coronavírus e atinge diretamente a independência funcional do MP.
Assinado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, presidente do CNMP, e por Rinaldo Reis, corregedor nacional do Ministério Público, o texto não passou por discussão no plenário do conselho antes de ser divulgado.
Na noite desta segunda (22), após a publicação desta matéria, a Procuradoria-Geral da República soltou uma nota afirmando que a recomendação assinada por Aras não foi iniciativa dele, mas do corregedor nacional e da conselheira Sandra Krieger, presidente da Comissão de Saúde.
A maior polêmica está no artigo 2º, que recomenda que seja "respeitada a autonomia administrativa" de gestores do governo em atos de fiscalização de políticas públicas.
"Diante da falta de consenso científico em questão fundamental à efetivação de política pública, é atribuição legítima do gestor a escolha de uma dentre as posições díspares e/ou antagônicas, não cabendo ao Ministério Público a adoção de medida judicial ou extrajudicial destinadas a modificar o mérito dessas escolhas", afirma o artigo 2º, parágrafo único, da Recomendação Conjunta PRESI-CN número 2.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio Cruz da Nóbrega, discorda e diz que gestores não são livres para implementar o que bem desejam.
"O Supremo Tribunal Federal afirmou que devem ser levados em conta padrões nacional e internacionalmente reconhecidos, como o da Organização Mundial de Saúde (OMS), para a execução de políticas na pandemia", explica. "Além disso, em se tratando de proteção à vida e à saúde, as decisões do poder público estão sujeitas aos princípios da precaução e da prevenção: se há dúvida sobre os riscos de determinada medida, ela não deve ser adotada."
Um exemplo é a adoção da cloroquina no tratamento da covid-19 no sistema público. Apesar da imensa maioria das comunidades médica e científica serem contra sua aplicação em massa pela falta de comprovação de eficácia, não há consenso científico. Ou seja, seguindo a recomendação, promotores e procuradores não deveriam questionar compras públicas do medicamento para esse fim.
"A recomendação expedida não foi objeto de prévio debate no âmbito do Conselho Nacional, como costuma ocorrer, ocasião em que são ouvidas as entidades representativas do MP e da própria sociedade civil. Não foi aprovada, sequer, pelo plenário", destaca Nóbrega.
Questionado sobre as críticas, o conselho, através de sua assessoria, afirmou à coluna que "o referido ato será devidamente submetido à apreciação do plenário do CNMP, oportunidade em que este poderá referendá-lo ou não".
E defende o documento "como medida cabível e necessária para o enfrentamento da epidemia do novo coronavírus pelo Ministério Público brasileiro" e que ele está em concordância com o seu regimento interno.
"Cabe registrar que, até o presente momento, a Presidência não recebeu nenhum procedimento formal que questione a recomendação", concluiu.
Pedido de impugnação
Para Manoel Victor Murrieta, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), seus associados contam com independência funcional e não estão obrigados a seguir a recomendação. Ele informa que ela não foi bem recebida por promotores e procuradores e que eles não vão deixar de atuar como antes por causa do texto. A entidade reúne 16 mil promotores e procuradores de Justiça nos Estados e no Distrito Federal, além dos membros do Ministério Público Militar.
A dificuldade de se encontrar consenso científico sobre temas complexos não pode servir, na sua avaliação, como justificativa para o silêncio de membros do MP. "Não criamos política pública, mas avaliamos se aquela que está sendo praticada é correta. A recomendação do CNMP sugere a não atuação em caso de dúvida, mas o ideal é o inverso", explica.
"Em muitos assuntos, políticas públicas são construídas a partir da indução por parte do próprio Ministério Público para que governos cumpram seu compromisso com a sociedade. A execução é do gestor, mas ela pode se dar de forma ilegal. Cabe, portanto, ao MP acompanhar e pedir a correção", reforça o presidente da ANPR.
O documento também "recomenda aos membros do Ministério Público brasileiro que atentem para os limites de suas funções institucionais, evitando-se a invasão indevida das atribuições alheias e a multiplicação dos conflitos daí resultantes". Afirma que questões envolvendo agentes municipais e estaduais devem ficar com o MP dos Estados e assuntos da União, com os ramos federais da instituição.
Para Fábio Cruz da Nóbrega, a recomendação impõe balizas que nem a lei e o Judiciário delimitam ao trabalho dos promotores e procuradores e ignora que, em áreas essenciais, como a saúde e a educação, há a possibilidade de atuação concorrente de vários ramos do MPs. Neste caso, segundo ele, conflitos deveriam ser resolvidos pela Justiça e o próprio CNMP.
Os presidentes da ANPR, da Conamp e da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) estudam um pedido de impugnação coletivo contra a recomendação.
A coluna conversou com procuradores da República e do Trabalho que afirmam que a divulgação do documento soou como "ameaça", exatamente por ser assinada pelo procurador-geral da República e pelo corregedor nacional do Ministério Público.
"Ou seja, quem descumprir, em tese, está sujeito a ter conduta analisada sob o viés disciplinar?", questionou um deles.
Trabalho escravo e trabalho infantil
Uma fonte no Palácio do Planalto afirmou à coluna que o texto gerou celebrações em listas de WhatsApp do governo. Em parte, por conta do limite à atuação de procuradores no que diz respeito à execução de políticas durante a pandemia. Mas, principalmente, porque há quem veja na recomendação um "freio" a promotores e procuradores que "perseguem o governo e o presidente" - por mais que o documento não trate disso.
A edição da recomendação também teve um forte impacto negativo junto aos procuradores do Trabalho. "Teme-se que o entendimento que essa recomendação possa consagrar dure para além da pandemia", avalia José Antônio Vieira de Freitas Filho, presidente da ANPT.
Para ele, o impacto de não poder questionar ações de gestores municipais, estaduais e federais pode levar ao aumento de casos de trabalho escravo e infantil, por exemplo.
"Temos dificuldade em combater o trabalho infantil sem uma política pública de acolhimento à infância, à adolescência, à família. Ao mesmo tempo, se você não gera emprego e renda, os trabalhadores resgatados da escravidão voltam a ser escravos", afirma.
Para Freitas Filho, a recomendação fixa diretrizes contrárias à declaração do próprio conselho - de que não cabe a ele julgar nem o que os membros do MP fazem como atividade finalística, nem questões que promotores e procuradores submetem ao Poder Judiciário por considerarem contrárias ao interesse público.
Os demais pontos da recomendação do CNMP que tratam da importância da transparência (artigo 3º), dos diálogos interinstitucionais (4º) e do compartilhamentos de dados e boas práticas (5º) não causaram polêmica como os dois primeiros, sobre as atribuições do MP e a respeito das decisões de gestores públicos frente à "falta de consenso científico".
Procuradores da República também reclamam que o Gabinete Integrado de Acompanhamento da Covid-19 (Giac-Covid-19) criado pela Procuradoria-Geral da República durante a pandemia tem, se recusado a enviar recomendações para correção de políticas públicas aos ministérios, o que ajudaria o governo federal em detrimento da saúde da população.