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Leonardo Sakamoto

Cena de culto à cloroquina mostra que ela se tornou símbolo do bolsonarismo

Bolsonaro mostra cloroquina para apoiadores no Palácio da Alvorada                             - Reprodução/Facebook
Bolsonaro mostra cloroquina para apoiadores no Palácio da Alvorada Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

20/07/2020 12h30

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A primeira referência que me veio à cabeça com a imagem de Jair Bolsonaro erguendo uma caixa de cloroquina para o delírio de seus seguidores aglomerados em frente ao Palácio do Alvorada, neste domingo (19), foi Rafiki apresentando Simba aos súditos de Musafa em Rei Leão. A segunda, ancorada na realidade e mais preocupante, foi a lembrança das formas de propaganda descritas pela filósofa alemã Hanna Arendt no clássico "Origens do Totalitarismo".

Bolsonaro tem feito intensa publicidade da cloroquina para o tratamento da covid-19, mesmo que a maioria esmagadora de médicos e cientistas aponte tanto para a ineficácia do produto quanto para os graves efeitos colaterais. Mas é a primeira vez que ele o coloca no centro de uma aclamação quase religiosa.

A existência de um "elixir mágico" para combater o coronavírus é pertinente ao comportamento do presidente, que variou entre o negacionismo e a omissão deliberada, com o intuito de empurrar os brasileiros de volta à rua - mesmo colocando nossa vida em risco. Afinal, quarentena é bobagem se há um remédio que resolve tudo.

E contra convicções, comprovações tornam-se meramente acessórias. Ao defender o uso da cloroquina na live que havia realizado na noite de quinta (16), o presidente afirmou que não importa que o produto não tenha passado pelo crivo de testes, uma vez que "vai ter a comprovação científica, mais cedo ou mais tarde".

Para Hanna Arendt, cuja obra analisou o nazismo e outros movimentos ainda na década de 1940, "a propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica e absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista demagógico, a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os métodos". 

Bolsonaro, criticando prefeitos e governadores contrários à ampla distribuição do medicamento, questiona a partir de um futuro que só ele viu e profetiza "quantas mortes podiam ser evitadas". Ignora, contudo, o outro lado da moeda: quantas mortes podem ser evitadas se adotarmos máscaras e distanciamento social ao invés de distribuirmos cloroquina?

É irrelevante se o presidente acredita ou não nos efeitos terapêuticos da droga. Tem acesso aos melhores médicos e hospitais que nosso dinheiro pode lhe pagar e sua saúde é tutelada por adultos responsáveis. O importante é que ele a usa para seus fins políticos. E, nesse contexto, a cloroquina se tornou símbolo da resistência bolsonarista e elemento para a propaganda de seus ideais.

Já seus seguidores absorvem a cloroquina como uma cura que, na visão deles, vem sendo escondida por uma conspiração da imprensa, de comunistas e de chineses a fim de manter a população com medo e deprimir a economia através de bloqueios desnecessários. Mas também ela é a representação palpável da negação ao conhecimento e a todos os que usam a ciência para lhes dizer o que é melhor para suas vidas. Com isso, o apoio à cloroquina torna-se um repúdio a cientistas e intelectuais que impõem regras de isolamento, mas são incapazes de explicar suas dúvidas, resolver suas inseguranças e acabar com suas angústias.

É compreensível que a pandemia gere um sentimento de impotência na população diante da falta de informação sobre os efeitos e o tratamento da covid-19, uma doença nova e que ainda está em estudo. Isso abre espaço para que líderes demagógicos preencham as lacunas, mesmo com mentiras, e apontem soluções que não resolvem. Parte da população abraça essas soluções em busca de alguma coerência para suas vidas.

Bolsonaro diz que, depois que tomou a cloroquina, os sintomas se foram. Mesmo que acreditemos no que ele diz, não é porque "A" acontece depois de "B" que "B" acontece por causa de "A". A imensa maioria das pessoas é curada da covid-19 graças ao próprio sistema imunológico. O presidente quer creditar, portanto, a vitória a ele e a seus remédios sem efeito. Perceba-se que ele pouco ou nada fala sobre o apoio a uma vacina, que proteja a população.

"O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte", afirma Hanna Arendt. "A propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a coerência."

Aliás, a fuga da realidade é, como diz a autora, um veredito contra um mundo no qual o acaso é o senhor supremo e no qual os seres humanos precisam se adaptar constantemente. Diante da arbitrariedade da vida, muitos acabam por curvar-se à coerência fictícia de uma ideologia não porque são estúpidas ou perversas, mas porque essa fuga é uma questão de sobrevivência pessoal. É difícil assumir que estamos à deriva.

"A propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo real, cuja principal desvantagem é não ser lógico, coerente e organizado", diz ela. "A coerência da ficção e o rigor organizacional permitem que a generalização sobreviva ao desmascaramento de certas mentiras mais específicas."

Os apoiadores fanáticos de Bolsonaro acreditam na infalibilidade de seu líder, mesmo que não tenha reconhecido que errou ao tratar uma pandemia que já matou mais de 79 mil pessoas no Brasil como "fantasia", "histeria", "gripezinha", "resfriadinho". A pressuposição da infalibilidade não se baseia na inteligência superior, mas - segundo Hanna Arendt - na crença de que ele atue como tradutor das forças histórica e naturais. 

O bolsonarismo tem um componente revolucionário, subvertendo as instituições e falando diretamente com a sua massa, e tomaria de assalto a democracia se pudesse, colocando uma coisa feia no lugar. Apesar disso, não estou comparando-o ao nazismo e a outros movimentos totalitários. Mas cabe a analogia sobre suas práticas - menos por desejo de quem analisa do que pelo comportamento do próprio Bolsonaro.

A boa notícia da releitura de Hanna Arendt, se é que há uma, é que quando o movimento totalitário cai, os fanáticos podem mudar. Ou seja, há luz no fim do mandato.

"Os membros dos movimentos totalitários, inteiramente fanáticos, enquanto o movimento existe, não seguem o exemplo dos fanáticos religiosos morrendo como mártires, embora estivessem antes dispostos a morrer como robôs, mas abandonam calmamente o movimento como algo que não deu certo e procuram em torno de si outra ficção promissora, ou esperam até que a velha ficção recupere força."