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Leonardo Sakamoto

Ataque a Adnet por canal oficial do governo é mais um ensaio de ditadura

No vídeo, além de satirizar a campanha do Planalto, Adnet (foto da direita) também fez paródias de outras pessoas, como o presidente Jair Bolsonaro                              - Reprodução
No vídeo, além de satirizar a campanha do Planalto, Adnet (foto da direita) também fez paródias de outras pessoas, como o presidente Jair Bolsonaro Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

05/09/2020 20h21

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Marcelo Adnet foi alvo da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República e do secretário especial de Cultura, Mario Frias, após divulgar uma paródia sobre um vídeo de uma campanha do governo federal sobre "heróis brasileiros". Frias, que protagoniza o vídeo, chamou o humorista de "crápula", "criatura imunda" e "bobão". A postagem de uma foto de Adnet pela Secom, afirmando que ele faz "pouco caso dos brasileiros", em suas redes sociais oficiais, levou a uma enxurrada de ataques bolsonaristas contra ele.

O caso é mais uma triste evidência de que a secretaria tem atuado como órgão de propaganda política, mas também de repressão a críticos do governo. Reproduz dessa forma modelos adotados por ditaduras de direita e de esquerda em todo mundo.

E lembra as piores práticas de nossos próprios períodos autoritários. Não apenas as da última ditadura militar (1964-1985), tido como exemplo pelo presidente da República, mas também às do antigo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).

O DIP funcionou como um instrumento de promoção pessoal de Vargas , de sua família e das principais autoridades de seu governo. Ao mesmo tempo, atuava na coerção da crítica e da liberdade de expressão, no combate a qualquer ideia que o Estado Novo considerasse perturbadora da unidade nacional e na censura das artes e do jornalismo.

No intuito de defender interesses pessoais do presidente e de seus assistentes, a Secom tem sido acusada de perseguição política. E de ferir a impessoalidade e a probidade da administração pública ao se utilizar de uma conta oficial do governo para atingir cidadãos por emitirem opiniões contrárias às do presidente.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que vai acionar o Ministério Público Federal e pedir para o Congresso Nacional investigarem a ação do órgão. Esperemos que o novo melhor amigo de Bolsonaro, o centrão, permita.

Marcelo Adnet, infelizmente, não foi o primeiro, nem deve ser o último

No dia 3 de fevereiro, por exemplo, a secretaria usou sua conta no Twitter para atacar a cineasta Petra Costa, diretora do documentário "Democracia em Vertigem". A obra conta a trajetória dos governos petistas, passando pelo impeachment de Dilma Rousseff até à crise política atual. Finalista do Oscar, Petra havia tecido críticas contra o governo Bolsonaro para uma TV pública norte-americana.

"Nos Estados Unidos, a cineasta Petra Costa assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do País no exterior. Mas estamos aqui para mostrar a realidade. Não acredite em ficção, acredite nos fatos", postou a Secom. Isso gerou ameaças contra ela por grupos de fãs do presidente.

A Secom também é usada para ataques à própria democracia

Como uma postagem, em 10 de março deste ano, em que reforçou a "legitimidade" de uma manifestação bolsonarista que ocorreria cinco dias depois. "As manifestações do dia 15 de março não são contra o Congresso nem contra o Judiciário. São a favor do Brasil", afirmou em uma postagem na qual transcreveu frase de Bolsonaro.

No dia 15 de março, a "manifestação legítima" pediu o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Em frente ao Palácio do Planalto, participantes gritavam "AI-5! AI-5! AI-5! AI-5!", enquanto Bolsonaro acenava a eles. Decretado pela ditadura militar, em dezembro de 1968, o Ato Institucional número 5 deu poderes para que o presidente fechar o Congresso, estabelecer a censura e descer o cacete geral.

E as redes sociais do governo têm sido usados para colocar a saúde da população em risco

Nesta semana, após Bolsonaro defender que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina" contra o coronavírus, incendiando o naco ultraconservador de seus seguidores, a Secretaria de Comunicação Social reforçou o recado. Usou um canal institucional para dizer que ninguém será obrigado a tomar nada.

Ou seja, utilizou recursos públicos em uma plataforma pública para bombar posicionamento ideológico do presidente. Pior, para cometer um crime contra a saúde pública. Diante da repercussão negativa, a Secom voltou a postar. Disse que "o Brasil é uma democracia, o governo é liberal e seu presidente não é um tirano".

A secretaria sabe que, quando se fala em obrigatoriedade de vacina, isso não significa picar cidadãos à força, como acontecia há mais de cem anos. Mas restringir acesso a determinados direitos, por exemplo. O próprio Ministério da Cidadania afirma que manter a vacinação das crianças em dia é condicionante para continuar recebendo o Bolsa.

Sabe, mas ajusta as balizas republicanas às necessidades de Bolsonaro. Dessa forma, sua função tem ido muito além de levar informação para garantir qualidade de vida à população. Tornou-se um serviço de propaganda aos interesses de seu líder. E o que é público vira privado.

Recursos públicos para defender o presidente e seus assistentes

O DIP ajudou no culto à personalidade de Getúlio Vargas e na construção da ideia de "pai dos pobres". A Secom é vista como uma das ferramentas para que o atual presidente atinja o mesmo objetivo, reescrevendo a história se necessário for. A divulgação maciça do auxílio emergencial, ignorando a paternidade de deputados e senadores, que o diga.

"O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte", afirma a filósofa Hanna Arendt, no clássico "Origens do Totalitarismo". "A propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo real, cuja principal desvantagem é não ser lógico, coerente e organizado", diz ela.

Os apoiadores fanáticos de Bolsonaro acreditam na infalibilidade de seu líder, mesmo que não tenha reconhecido que errou ao tratar uma pandemia que já matou mais de 126 mil pessoas no Brasil como "fantasia", "histeria", "gripezinha", "resfriadinho". A pressuposição da infalibilidade não se baseia na inteligência superior, mas - segundo Hanna Arendt - na crença de que ele atua como tradutor das forças histórica e naturais. Para construir essa narrativa, nada como redes sociais a serviço do presidente bancadas com dinheiro público.

O bolsonarismo tem um componente revolucionário, subvertendo as instituições e falando diretamente com a sua massa. Tomaria de assalto a democracia se pudesse, colocando uma coisa feia no lugar. Apesar disso, não estou comparando-o ao nazismo e a outros movimentos totalitários. Mas cabe a analogia sobre suas práticas de propaganda - menos por desejo de quem analisa do que pelo comportamento do próprio Bolsonaro.

Em suma, as instituições não estão funcionando normalmente. A menos que o "normal" seja a escravidão da Colônia e do Império, a perseguição e a censura do Estado Novo e o pouco caso com a vida e com a liberdade da ditadura militar.

Em tempo: Todo esse barulho não deveria servir de "golden shower", quer dizer, de distração para outras coisas que importam. Como a resposta não dada à pergunta: presidente, por que Michelle Bolsonaro recebeu R$ 89 mil de Queiroz e esposa?