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Leonardo Sakamoto

Enquanto pobres penam na fila, candidatos ricos recebem auxílio emergencial

Colunista do UOL

05/10/2020 16h09

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Mais de 500 candidatos nas eleições municipais têm patrimônio de mais de R$ 1 milhão e ainda assim receberam auxílio emergencial ou Bolsa Família neste ano. Reportagem de Vinicius Konchinski, Guilherme Botacini e Beatriz Montesanti, do UOL, cruzou dados informados pelos próprios candidatos com as folhas de pagamento dos benefícios entre maio e junho.

Sim, enquanto muitos que precisam do dinheiro ganharam um "não do governo e ainda aguardam seu pedido ser reconsiderado, há candidatos com patrimônio que receberam o benefício meses atrás.

Provavelmente, há aqueles que entraram de gaiato por sacanagem de alguém que fez o cadastro à sua revelia, como já vimos acontecer. E também há os que podem ter caído em algum golpe. Mas há aquele naco patrimonialista que não distingue o que é público do que é privado. E por acreditar ser especial, não se vê como cidadão, mas como sócio de um grande empreendimento extrativista chamado Brasil.

Como esse empreendimento costuma privatizar os lucros para meia dúzia e socializar os prejuízos para a massa, no momento em que ele distribuiu algo para o coletivo, parte dos sócios não aceitou ficar de fora. Recorreram à famosa Lei de Gerson.

Os mais jovens talvez não conheçam a expressão, mas ela veio de uma propaganda de cigarros, de 1976, na qual o jogador de futebol Gerson pergunta: "gosta de levar vantagem em tudo, certo?" Acabou sendo usada para se referir a quem, sempre que pode, tenta tirar uma casquinha sem se importar com as consequências éticas e morais de seu ato.

Já é difícil construir uma República em que parte dos cidadãos trabalha com o "cada um por si e Deus por todos" - seja porque se sente dona da coisa toda, seja porque vive num país que sistematicamente lhe dá as costas.

Imagina, então, o tamanho do desafio quando estamos falando de pessoas que concorrem às Prefeituras e Câmaras Municipais e, portanto, teriam a obrigação de zelar pelo bem comum e pelas contas públicas. Isso faz lembrar o bordão do deputado Justo Veríssimo, personagem do saudoso Chico Anysio: "quero que pobre se exploda".

Porque na prática, é isso o que acontece. Enquanto uma parcela da população com patrimônio acessou recursos destinados à sobrevivência de trabalhadores informais pobres durante a quarentena, a imprensa registrou a história de tantas e tantas pessoas que efetivamente precisavam dos recursos, mas tiveram seus pedidos negados pelo sistema do governo Bolsonaro.

Originalmente, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, queria pagar um auxílio emergencial de R$ 200. Foi o Congresso Nacional que pressionou para que o valor aumentasse - depois, o presidente tentou colher os louros sozinho, mas isso já faz parte dos Contos da Reeleição. Desde então, mais de 65 milhões receberam as parcelas. Se a imensa maioria desse total realmente precisava da grana, alguns mais abonados foram malandros e, acreditando que nunca seriam pegos, entraram com o pedido.

Com muito trabalho de educação para a cidadania, concomitante a mudanças estruturais a fim de garantir que a coletividade pense no interesse coletivo e não apenas no seu próprio umbigo, ainda assim levará um rosário de gerações até que comportamentos como esse tornem-se peça de museu. Pois na visão de parte da sociedade, o discurso do bem comum é uma peça fofa de marketing que se dobra às necessidades individuais. Ou, no limite, é coisa de otário mesmo.

Por isso, não basta educação para cidadania. Seria necessário punição de caráter econômico a quem, comprovadamente, se beneficiou do auxílio sem estar apto a recebe-lo.

E uma punição política, que teria que ser dada pelas urnas.

A situação também é responsabilidade de um governo que foi incapaz de entregar um sistema que cruzasse dados e evitasse fraudes. Entende-se o prazo curto para colocar o processo em marcha, mas os insistentes casos bizarros, que continuam meses depois do início do pagamento, mostram que também faltou planejamento.

O que não é surpresa em uma administração no qual, no topo da cadeia de comando, há alguém que nega a gravidade da pandemia e diz que quem ficou em casa é covarde.