Privatização do SUS e incêndio em hospital são fruto de um projeto de país
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
No mesmo dia em que um incêndio no sucateado Hospital Federal de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, mata três pessoas e remove às pressas mais de 160 pacientes, o presidente da República e o ministro da Economia publicam um decreto que abre as portas para a privatização do Sistema Único de Saúde.
Os dois fatos, ocorridos nesta terça (27), não são mera coincidência, mas fazem parte de uma lógica que precariza a saúde pública e depois vende a precarização como justificativa para a privatização do sistema.
A precarização não é consequência inexorável do caráter público, mas de um projeto de país. Projeto este que sonha com um sistema como o que opera nos Estados Unidos, baseado em planos de saúde privados. Quem não tem um seguro saúde? Sofre e morre, oras.
Não se sabe ainda as causas do incêndio, mas a Defensoria Pública da União diz que o poder público sabia do risco, com transformadores que funcionavam no limite, hidrantes que não operavam direito e uma rede elétrica precária. E o Corpo de Bombeiros já havia notificado a unidade mais de uma vez. Mas quem tem coragem de fechar o mais importante hospital federal da cidade em meio a uma pandemia?
Não admira que, nesse contexto de penúria, a gestão Bolsonaro tenha reduzido em 11% o já insuficiente orçamento do Hospital de Bonsucesso, em comparação ao último ano do governo Michel Temer, de acordo com matéria de Igor Mello, do UOL. Pelo contrário, faz bastante sentido.
Reportagem de Natália Cancian, da Folha de S.Paulo, mostra que o decreto publicado por Jair Bolsonaro (sem partido) e Paulo Guedes colocou unidades básicas de saúde na mira de um programa de concessões e privatizações do governo. O texto afirma que estudos devem ser feitos visando a "parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de unidades básicas de saúde".
Nada mais lógico do que, diante de um cenário de terra arrasada, garantir que empresas assumam o serviço. Precariza e vende.
A regra do teto de gastos públicos, aprovada pelo Congresso Nacional em 2016, e defendida calorosamente como medida civilizatória por parte da elite política e do mercado, faz parte desse projeto de precarização da saúde pública.
O aumento da destinação de recursos para a saúde ocorreu acima da inflação nas últimas décadas em parte para responder às demandas sociais presentes na Constituição de 1988 e, consequentemente, tentar reduzir o imenso abismo social do país. Se o reajuste tivesse sido apenas pela inflação, o tamanho da oferta de serviços não acompanharia nem o crescimento da população, permanecendo tudo como estava. Ou seja, na lama.
Se a qualidade do serviço público seguiu, mesmo assim, insuficiente para a garantia da dignidade da população, é porque o déficit de dignidade era gigante por aqui. Não estamos na Suécia ou na Noruega, onde é só manter o padrão, temos que correr atrás do prejuízo.
Mas, agora, com as amarras do teto de gastos, novos investimentos em hospitais só podem ocorrer se, por outro lado, precarizarem postos de saúde ou achatarem salários de médicos, enfermeiros e técnicos ou ainda tirarem dinheiro da educação ou da segurança pública.
Também faz parte desse projeto de precarização e privatização do sistema, as recentes declarações do líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR). Ele reclamou que a Constituição Federal "só tem direitos" e que precisa trazer mais deveres à população. Acredita que ela tornou o país "ingovernável" por causa da necessidade de efetivar esses direitos. Quer jogá-la no lixo e fazer outra.
Barros é coerente, ao menos. Já havia dito isso, em maio de 2016, quando era ministro da Saúde de Michel Temer. Naquele mês, defendeu uma redução no tamanho do SUS: "Quanto mais gente puder ter planos [de saúde], melhor porque vai ter atendimento patrocinado por eles mesmos, o que alivia o custo do governo em sustentar essa questão". Vale lembrar que o ministro recebeu, em 2014, R$ 100 mil de doação eleitoral de um representante do setor de planos de saúde.
Faltam recursos para o Serviço de Atendimento Médico de Emergência (Samu), o Programa Saúde da Família, o sistema de vacinação e o reaparelhamento de hospitais. Ou seja, remover doentes e feridos, prevenir doenças nos mais pobres, evitar epidemias e sofrimento e mortes desnecessárias e equipamento básico para atendimento à população. Tudo o que seria afetado ao privatizar a base do sistema.
Para quem afirma que isso combateria a corrupção, que é inerente à natureza das instituições públicas, vale lembrar que o afastamento do governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), foi por conta de um esquema de desvio de recursos públicos destinados ao combate à pandemia que envolveu uma organização social de caráter privado.
Revisar o teto de gastos, aumentar a progressividade de impostos sobre renda e patrimônio mordendo os super-ricos, garantir recursos para que o Sistema Único de Saúde possa operar como deveria, enterrar as pretensões golpistas de uma nova Constituição só para silenciar a massa que cobra que a letra morta saia do papel são ações que passam pela revisão desse projeto de país.
Mas o governo federal segue com dezenas de bilhões de reais em desonerações tributárias e crédito subsidiado para o setor empresarial, o que flui para o bolso de seus acionistas, enquanto faz dívida com o SUS.
Ninguém nega que o déficit público precisa ser equacionado e que soluções amargas devem ser propostas e discutidas. E que todos terão que dar sua contribuição, pobres e ricos. Mas o Brasil de Temer e Bolsonaro garantiu um remédio que, para curar a economia, mata os pobres.
Faz sentido. Ao que tudo indica, não haverá espaço para pobres nesse admirável Brasil novo que pode surgir desse projeto de país.