'Guerra da Vacina' de Bolsonaro chega às ruas e ameaça imunidade do rebanho
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Centenas de bolsonaristas protestaram contra a vacina para covid-19 desenvolvida na China e a obrigatoriedade da imunização, neste domingo (1), na avenida Paulista, em São Paulo.
Na pauta, ataques ao governador João Doria (PSDB) e ao prefeito Bruno Covas, apoio ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, repúdio à vacina Coronavac, que será produzida no Instituto Butantan, na capital paulista, reclamações sobre a necessidade de usar máscara e, claro, teorias da conspiração.
Como aquela que diz que o coronavírus foi criado em laboratório pela China e a vacina daquele país contaria com microchips que seriam inoculados a fim de que todos os habitantes do mundo fossem rastreados e controlados através de antenas de 5G. Essa teoria afirma que isso seria um plano da intelectualidade global junto com bilionários pedófilos, cavaleiros templários e os Illuminati.
Considerando que uma pesquisa Datafolha apontou, em outubro, que 17% dos moradores de São Paulo, 16% do Rio de Janeiro, 15% de Belo Horizonte e 20% do Recife não pretendem se imunizar quando sair a vacina para covid-19, a aglomeração na Paulista representa um naco da população, ainda que minoritário. E que pode crescer.
Qualquer uma das vacinas que está sendo desenvolvida contra a doença ao redor do mundo não terá 100% de eficácia. Natália Pasternak, doutora em microbiologia e diretora do Instituto Questão de Ciência, explicou à coluna que, diante disso, "se você não tiver uma adesão em massa da população, a quantidade de pessoas protegidas no final pode não ser suficiente para fazer o vírus parar de circular".
E, se isso acontecer, a própria credibilidade do sistema de vacinação no Brasil vai ser reduzida junto à população, o que pode levar ao crescimento de outras doenças. A cientista-chefe da OMS (Organização Mundial da Saúde), Soumya Swaminathan, afirmou que a organização pode aprovar uma vacina com eficiência mínima de 50%. "[Queremos uma com] no mínimo 70% de eficácia, mas no pior dos casos com 50% de eficácia poderia ainda ser útil". O engajamento da população, portanto, é fundamental para o sucesso da imunização coletiva.
Por aqui, o total daqueles que desconfiam da vacina tem aumentado por conta do nível de desinformação, em especial, de boatos e notícias falsas que correm nas redes sociais e aplicativos de mensagens. A confusão com a vacina produzida pela Rússia, que, inicialmente, não liberou os dados sobre seus testes, e os efeitos colaterais nos testes com a vacina de Oxford, no Reino Unido, também ajudaram a gerar um sentimento de desconfiança.
Ao mesmo tempo, o comportamento do governo federal ajudou a envenenar o ambiente. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) transformou a vacina em tema de disputa política com o governador paulista, usando-a para manter mobilizada uma parcela do bolsonarismo-raiz mais radical e, de quebra, ajudando a campanha eleitoral de Donald Trump ao polarizar com a China.
Bolsonaro tem dito que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina", criando o entendimento falso que residências serão invadidas para a imunização - por mais que isso não ocorra por aqui há mais de um século.
Obrigatoriedade, hoje, é decorrente de perda de acesso a benefícios - o Bolsa Família é suspenso, por exemplo, para quem não vacina os filhos. Mas nunca houve coerção física, uma vez que a população, quando informada de forma transparente e direta da importância das vacinas, comparece voluntariamente aos postos de saúde.
Além disso, qualquer vacina terá que passar pelo crivo da Anvisa, o órgão que garante a eficácia e a segurança dos medicamentos, antes de ser liberada. O governo Bolsonaro, que critica a Coronavac, comprou doses da vacina de Oxford ainda sem certificação. Ou seja, não é com o povo que ele está preocupado.
Mas mesmo que essas centenas de pessoas sejam representantes de uma minoria exaltada dentro da minoria que não quer se vacinar, elas são um sinal de que governos (os responsáveis, ao menos), a sociedade civil e a imprensa deveriam investir mais em campanhas para informar e tirar dúvidas da população a respeito das vacinas para covid-19.
Pablo Ortellado, professor de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, que acompanhou a manifestação deste domingo, afirmou que a idade média dos participantes é mais alta que a de protestos anteriores. E o perfil é de apoiadores históricos do presidente, sem o naco lavajatista.
Ou seja, é um grupo que está fechado com Bolsonaro. Mas há outros cidadãos que, diante de informações de qualidade, são capazes de discernir e optar pela vacina, independente de seu país de origem, desde que chancelada pela Anvisa, por médicos e cientistas, em nome de seu bem e do bem coletivo.
O governo Bolsonaro prometeu nos devolver 50 anos para trás. Se o legado da pandemia for o crescimento da paranoia anticiência, garantirá que retrocedamos um século.