Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Ivermectina, como o governo Bolsonaro, não tem eficácia contra a covid-19
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O presidente Jair Bolsonaro, que se tornou garoto-propaganda do uso de um vermífugo para tratamento precoce contra o coronavírus, foi desmentido pelo próprio laboratório que desenvolveu a droga.
A Merck, empresa farmacêutica que produziu inicialmente a ivermectina, divulgou um comunicado afirmando que seus cientistas procuraram, mas não encontraram evidências que justifiquem o emprego do medicamento no tratamento da covid-19.
Reforça dessa forma o que médicos e pesquisadores responsáveis vêm dizendo: ivermectina é ótimo contra determinados parasitas, mas não para infecções causadas pelo novo vírus. E deve ter o uso limitado em idosos, exatamente um dos grupos de risco para covid e, por isso, mais vulnerável ao canto da sereia das saídas milagrosas.
Como sempre tem um chinelo velho para um pé cansado, há profissionais de saúde e políticos que veem em Jair um Messias e defendem a distribuição do chamado "kit covid", que contém o tal vermífugo, a hidroxicloroquina das emas e a azitromicina - nenhum deles com eficácia comprovada contra a doença. E a "receita" se espalhou, como um vírus.
Enquanto estava na fila para ser atendido na farmácia, vi uma mulher comprar caixas de ivermerctina. Disse, com um sorriso largo ao balconista: "sou precavida". Era antevéspera de Natal. No dia seguinte, milhões de famílias começaram a se aglomerar em um movimento, apoiado pelo presidente, que ajuda a explicar a atual onda de mortes.
O Brasil registrou, nesta sexta (5), o 16º dia seguido com média móvel de óbitos por covid acima de mil, totalizando 230.127.
Quantos desses que morreram acreditaram que a mentira do tratamento preventivo de Bolsonaro funcionava? Quantas empregadas domésticas, porteiros, seguranças, cozinheiras, motoristas não acreditaram, mas pagaram o pato mesmo assim?
Enquanto dezenas de países corriam para garantir vacinas para a sua população a fim de frear as mortes por covid-19 e retomar a economia com segurança, o governo Jair Bolsonaro se dedicou a entupir os brasileiros de "feijões mágicos".
O Ministério da Saúde, do general Eduardo Pazuello, chegou a enviar terraplanistas biológicos para pressionar a Prefeitura de Manaus a distribuir hidroxicloroquina e ivermectina. E deixou de monitorar um insumo que realmente faz diferença, o oxigênio. Com isso, uma catástrofe atingiu a cidade e pessoas morreram sufocadas.
Na esmagadora maioria dos casos, nosso sistema imunológico é capaz de dar conta da doença, produzindo anticorpos e eliminando o coronavírus. Ao apontar um remédio ineficaz como solução para casos leves, o presidente está, na verdade, tentando roubar o mérito por algo que o organismo já faria por conta própria.
E isso cola em uma parte desavisada da população. Afinal, como já disse aqui, o que tem mais a cara de ser responsável por vencer uma guerra contra uma doença mortal: estruturas microscópicas que cada um tem dentro de si, os glóbulos brancos, ou um produto milagroso distribuído com pompa e circunstância pelo sistema de saúde que é alvo de elogios semanais do presidente em suas lives?
E os que morrem? Bem, como o próprio presidente disse, todo mundo morre um dia.
Falta oxigênio. Faltam remédios para intubar pacientes ou para amenizar seus sintomas em um rosário de municípios por todo o país. Faltam testes RT-PCR para identificar, rastrear e isolar os casos positivos. Faltam leitos de UTIs. Faltam respiradores. Faltam profissionais de saúde. Falta vacina em quantidade suficiente. Falta auxílio emergencial, interrompido em dezembro em meio à escalada da segunda onda de mortos.
Mas sobram estratégias para a reeleição em 2022.
Atribui-se a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista, a ideia de que uma mentira repetida várias vezes se torna verdade. Ou, como dizem os psicólogos, uma ilusão da verdade. A ilusão é tanto eficaz quanto a propensão de grupos de nela acreditarem. E, claro, da capacidade de difusão de quem a conta.
Propagada por um presidente da República, a mentira pode se tornar onipresente. A ponto de ser encarada como mais um detalhe na paisagem. Assim como a morte, em uma pandemia, em um país sem governo.