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Governo promove reunião 'secreta' sobre cadastro para programas sociais
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Por Marina Pita e Leonardo Sakamoto
O Ministério da Cidadania se reuniu a portas fechadas, sem qualquer tipo de parceria oficial, comunicado ou chamado público, com algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo para discutir um sistema para auto-inscrição de cidadãos no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico).
Especialistas criticam a falta de transparência no processo por parte do governo e alertam sobre riscos para os dados pessoais. Amazon, Google, Microsoft e TikTok estavam entre as convidadas.
O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) estuda aproveitar a experiência do autocadastramento via aplicativo para o auxílio emergencial, que chegou a 68 milhões de pessoas, para alterar a forma de entrada a outros benefícios sociais, como o Bolsa Família, conforme revelado pelo UOL. A inscrição via app foi alvo de recorrentes denúncias de fraudes.
A proposta de um aplicativo prevê reconhecimento facial e análise de geolocalização, possíveis cruzamentos com dados pessoais de empresas de redes sociais, além de uma possível interação com plataformas de emprego como LinkedIn e Catho.
Pela Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2019), para que o governo dê um passo como este, de usar o CadÚnico para outras finalidades e em parceria com empresas públicas, seria preciso que fosse apresentada uma norma, ainda que a lei preveja o uso de dados pessoais para fins de política pública.
E, no caso de compartilhamento de informações com agentes privados, estes devem estar previstos em contrato disponível para os cidadãos, de forma a assegurar o princípio da transparência.
O Ministério da Cidadania, questionado pela reportagem sobre o processo de escolha das empresas para esse diálogo, entre outras questões, afirmou que não iria se pronunciar enquanto não houver uma medida concreta a ser anunciada.
O CadÚnico é usado por mais de 20 programas do governo federal, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a tarifa social de energia.
Especialistas avaliam que caso indica falta de transparência
Para a pesquisadora em proteção de dados, direito do consumidor e dos cidadãos, Laura Schertel, essa movimentação do governo deixa perguntas importantes a serem respondidas.
"Não há informações suficientes, por enquanto, para avaliar a legalidade, mas este processo precisará passar por dois crivos, da perspectiva da LGPD: um formal, a análise da norma e contrato, e outro material, verificação de como esses dados estão sendo usados", explica Schertel, professora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora do centro de de direito, internet e sociedade do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Para o pesquisador em proteção de dados e tecnologia do Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta, o caso tem um problema de partida, de documentação e transparência, mas traz outras preocupações quanto à mudança na finalidade da coleta e tratamento de dados pessoais e quanto à "plataformização" da política pública.
"Pelo que tivemos acesso, este será um aplicativo de empregabilidade, recolocação e oportunidades de emprego e os espelhamentos necessários para isso podem gerar muitos riscos." Para ele, utilizar os dados de cadastro das famílias em um programa de transferência de renda e mesclar isso com o interesse de agentes econômicos que fazem filtragem e seleção de emprego, com plataformas de tecnologia para automação, é um atalho para que empresas tenham acesso a informações valiosas.
O Google informou à reportagem que o Ministério da Cidadania convidou o Google Cloud e outras empresas de tecnologia para "apresentar soluções técnicas com o objetivo de otimizar a gestão de projetos sociais sob o escopo do ministério".
E que a reunião foi apenas de apresentação das soluções, mas não existe qualquer contrato entre a empresa e o ministério para parceria ou execução de serviços.
A Amazon e o TikTok também afirmaram que não têm contrato assinado com o ministério para consultoria ou execução de serviços. Já a Microsoft informou que o contrato que a empresa possui com o ministério "não engloba esta ação", mas afirma que está comprometida em "colaborar com a inovação tecnológica do Ministério da Cidadania e discutir sobre novas soluções".
Proposta vem a público após vazamento de dados de 220 milhões
As preocupações quanto a esse movimento do governo Bolsonaro também envolvem a segurança dos dados, especialmente após descoberto que informações de mais de 220 milhões de brasileiros estão disponíveis para compras na deep web.
"Ainda estamos avaliando um mega vazamento cuja fonte ou as fontes ainda são desconhecidas. Antes houve o vazamento de dados pessoais da Previdência Pública. Isso mostra a fragilidade da segurança digital nos órgãos públicos, mas também nas empresas. Acende alerta no país para que todos que coletam e tratam dados desenvolvam mecanismos de segurança mais sofisticados para impedir acesso não autorizado e exposições como essas voltem a acontecer", avalia Bia Barbosa, pesquisadora da organização não governamental Intervozes e uma das representantes da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Para ela, o fato de bancos de dados preverem a guarda de dado biométrico (o rosto) é ainda mais preocupante da perspectiva da segurança. Uma vez vazado um dado biométrico, não é possível alterá-los, como se faz com um número de identificação, e-mail ou senhas.
As conversas a portas fechadas levaram os coordenadores estaduais do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e Programa Bolsa Família de todos os 26 estados do país a manifestarem choque ante ao processo em andamento, sem consulta ou diálogo e que podem expor famílias e dados pessoais de mais de 77,46 milhões de pessoas - segundo dados do governo.
Ao ser questionada por coordenadores estaduais, representantes do ministério tentaram justificar que a "inovação tecnológica" era algo positivo e que não iria tirar o papel de atendimento feito por pessoas. A reportagem conversou com pessoas que estiveram na reunião e que afirmaram que milhares de profissionais envolvidos no Bolsa Família estão preocupados.
Risco de uso inapropriado dos dados de reconhecimento facial
A preocupação dos gestores da área de assistência social é certamente relevante. Considerando que são cadastradas famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o preenchimento de informações em um aplicativo não será trivial.
Em muitos casos é de se questionar se essas pessoas têm smartphone, se possuem memória para instalar o aplicativo, se têm familiaridade com a tecnologia, avalia Paulo Victor Melo, pesquisador sobre Internet e desigualdades e integrante do Intervozes.
Para receber o auxílio emergencial, muitos brasileiros pediram ajuda de vizinhos, parentes ou mesmo de ex-patrões. No caso do CadÚnico, isso poderia expor o nível de vulnerabilidade a que estão sujeitos e até fazer com que deixem de compartilhar determinadas situações com a pessoa que fará o preenchimento - o que prejudicaria a política pública.
Ainda, a previsão, registrada em apresentação acerca do aplicativo ao qual esta reportagem teve acesso, de uso do reconhecimento facial para validar o usuário pode ser também mais um empecilho ao acesso às políticas sociais.
O sistema, do qual ainda se tem poucas informações, poderia não reconhecer algumas faces por problemas na câmera e na foto. Vale lembrar que os sistemas de reconhecimento facial também vêm sendo criticados globalmente após uma série de pesquisadoras e pesquisadores denunciarem o "racismo algorítmico", comprovado por uma série de pesquisas.
Há casos em que o reconhecimento facial leva, de forma equivocada, a apontar que usuários do metrô são fugitivos da Justiça.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, do governo dos Estados Unidos, apontou que o índice de erro na identificação de pessoas negras é maior em 200 sistemas testados - a imensa maioria dos sistemas disponíveis no mercado. Ou seja, o padrão é a discriminação de raça, ainda mais presente quando a face é de uma mulher negra.