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Caso George Floyd: Você se lembra de Ágatha, João Pedro e Marcos Vinicius?
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Você se lembra do rosto de Ágatha Vitória Félix, de oito anos, morta com um tiro de PM quando voltava para a casa com a mãe no Complexo do Alemão? E do rosto de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, que morreu durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil em São Gonçalo (RJ)? E o de Marcos Vinícius da Silva, também de 14, assassinado, ainda de uniforme escolar, durante uma ação policial no Complexo da Maré?
Como construir um futuro se a maioria de nós já nem se lembra dos cadáveres de crianças negras mortas durante ações da polícia que nos chocaram recentemente?
Como um país quer ser decente se há pessoas que comemoram ações da polícia que matam jovens negros nas periferias, e depois se enrolam em bandeiras do Brasil para protestar por democracia?
Se eu disser que Derek Chauvin, um ex-policial branco, foi condenado nos Estados Unidos, nesta terça (20), por ter estrangulado até a morte George Floyd, um homem negro, em maio do ano passado, você dirá "que bom que a Justiça foi feita em um caso tão emblemático".
E é verdade. A revoltante morte de Floyd ajudou a mudar o curso da história dos EUA, uma vez que os protestos antirracistas do Black Lives Matter tomaram as ruas do país e atrapalharam os planos de reeleição de Donald Trump, contrário a eles.
Mas se amanhã circular a história de que uma pessoa negra e pobre foi agredida ou morta por um segurança privado ou um policial no Brasil, uma parte de meus compatriotas irá dizer prontamente "se morreu, é porque alguma coisa tinha feito de errado".
Sim, para muita gente, era Ágatha, João Pedro e Marcos Vinícius que estavam no "lugar errado e na hora errada".
Na verdade, em nossa sociedade, bem como na norte-americana, ainda circula impune a ideia de que há pessoas que nasceram com a "cor errada".
Por exemplo, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, assassinado em uma unidade do supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra, em 19 de novembro do ano passado, nasceu com a "cor errada". Após uma discussão com uma funcionária do caixa, ele foi levado ao estacionamento por um segurança e um policial militar temporário, ambos brancos, e espancado até a morte.
Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, 19 anos, morto por um segurança do supermercado Extra, do Grupo Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, no dia 14 de fevereiro de 2019, nasceu com a "cor errada". Ao "conter" o jovem, ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre ele. No vídeo, que circulou pelas redes sociais, testemunhas alertaram que Pedro estava "sufocando" e ficando "roxo", mas a sessão de tortura continuou.
Luciano Macedo, catador de materiais recicláveis, morto ao tentar salvar a família do músico Evaldo dos Santos, cujo carro foi alvejado por militares, em Guadalupe, Zona Norte do Rio, em abril de 2019, nasceu com a "cor errada". Evaldo estava indo para um chá de bebê e foi confundido com bandidos. Evaldo, que também nasceu com a "cor errada", morreu com o carro metralhado por fuzis.
Com algumas variações, essas mortes se repetem, e repetem, e repetem, já fazendo parte da paisagem de um país definido pelo racismo em todos os níveis de suas relações sociais. A diferença é que, nos últimos anos, as agressões, que sempre ocorreram, podem ser assistidas por milhões nas telas de seus celulares, o que permitiu a punição de agentes de segurança, como no caso de Floyd.
Isso ajuda a diluir a violenta mentira do "não existe racismo" ao passo que faz com que muitos se reconheçam no "já aconteceu algo semelhante comigo".
Como já disse aqui, sem demérito para outras pautas sociais e políticas, histórias como essas seriam razão mais do que suficiente para pararmos as ruas do país em protesto. Contudo, para muita gente, a morte e a tortura de pessoas negras pelas mãos do Estado ou da iniciativa privada não vale o arranhão deixado na caçarola por uma noite de bateção de panelas. Esse racismo não é um acidente, mas parte de um projeto que é violento com a população negra e pobre em nome da manutenção de nossos privilégios.
É claro que não há ordens diretas para sufocar e metralhar todos os negros e pobres dadas pelo comando do poder público ou por empresas privadas. Mas nem precisaria. Ensinamos agentes de segurança em grandes metrópoles a odiar para garantir que tudo se mantenha como está. Daí, quando queremos discutir isso nas escolas, sobra acusação de "ideologia".
Na opinião de uma parte considerável, não há racismo no Brasil. Apenas "coincidência" e "azar". Também não há genocídio de jovens pobres e negros das periferias pelas mãos da polícia, do tráfico, da milícia. "Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles."
E, como já disse aqui, o Brasil é um capataz que espanca e mata negros em estabelecimentos comerciais, mas também nas delegacias e periferias. E parece apreciar muito o seu trabalho. Tanto que uma das únicas certezas é que a tortura e a morte de pessoas negras continuarão sendo permitidas na iniciativa privada num país que tornou a execução de negros por agentes públicos uma tarefa do cotidiano.