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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Auxílio emergencial pago a trabalhadores escravizados beneficiava patrões

Marcello Casal JR./Agência Brasil
Imagem: Marcello Casal JR./Agência Brasil

Colunista do UOL

21/04/2021 11h17

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Dois casos envolvendo pessoas escravizadas que receberam o auxílio emergencial chamaram a atenção de auditores fiscais do trabalho e de procuradores do trabalho responsáveis pelo combate a esse crime. Na prática, eles mostram que o benefício pago pelo governo federal para garantir um mínimo de dignidade a trabalhadores durante a pandemia estava beneficiando os empregadores.

Uma mulher de 63 anos foi resgatada de condições análogas às de escravo na casa de uma família no bairro da Abolição, Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela era trabalhadora empregada doméstica e há 41 anos era escravizada pela mesma família, não recebendo salário, nem qualquer outro direito.

O Ministério Público do Trabalho aponta que os patrões sacaram o auxílio emergencial ao qual ela teria direito e embolsaram o valor. Ao questioná-los sobre o dinheiro, a vítima teria ouvido que o benefício não havia sido retirado porque seus documentos estavam velhos, desatualizados. Em depoimento à fiscalização, a patroa confirmou o saque, mas disse que ficou só com a primeira parcela, sendo que as demais foram retiradas por outra pessoa.

Vivendo em um dormitório pequeno e sem janelas, a trabalhadora ficava à disposição dos empregadores em tempo integral para limpar a casa e cuidar de uma pessoa doente. Nos momentos de folga, catava material reciclável na rua, mas o dinheiro também era confiscado pelos empregadores.

Esse resgate fez parte da "Operação Resgate", uma ação simultânea em 23 unidades da federação libertou 145 pessoas da escravidão contemporânea. Desencadeada no dia 27 de janeiro, reuniu Polícia Federal, auditores fiscais do trabalho do Ministério da Economia, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União.

Auditores fiscais do trabalho afirmaram à coluna que, durante a Operação Resgate, houve suspeitas de outros casos de empregadores embolsando o auxílio emergencial de pessoas escravizadas, mas as denúncias não foram confirmadas.

Em outro caso, duas crianças de nove e dez anos e uma adolescente de 13 foram encontradas, junto com seus pais, em condições análogas às de escravo em uma fazenda de café e eucalipto em Minas Novas (MG), região do Vale do Jequitinhonha. A fiscalização contou à coluna que eles passaram fome e a situação só não foi pior porque, na falta de salário, conseguiram receber o auxílio emergencial.

Ou seja, o fazendeiro acabou sendo o verdadeiro beneficiado, uma vez que o Estado brasileiro arcou, na prática, com a sobrevivência da família enquanto ela trabalhava em sua terra. Como eles recebiam o sustento através do auxílio emergencial, ele não precisava desembolsar salários e ficava com o resultado do trabalho deles.

O empregador havia prometido um salário mínimo por mês ao trabalhador, mas a família inteira recebeu entre R$ 300 e R$ 600 nos meses que ganhou algo. Às vezes, vinha apenas uma "feira" de alimentos. Eles estavam no local desde novembro de 2019. Com a chegada da pandemia, caiu a frequência de visitas do empregador e, não raro, ficavam sem dinheiro ou alimento. Em determinado momento, a família, mesmo trabalhando para o empregador, teve que procurar o auxílio emergencial. "Sem isso, teriam passado fome direto", avalia o auditor fiscal Hélio Magalhães.

Um detalhe: o governo Jair Bolsonaro interrompeu o pagamento do benefício em 31 de dezembro, começando a retomá-lo apenas em 6 de abril. Com essa pausa, a fome voltou a rondar a casa. No momento da fiscalização, no final de fevereiro, foi constatado um pouco de arroz, de macarrão, sal e feijão e açúcar misturado com pó de café. Questionado sobre a razão da mistura, o trabalhador explicou que era para evitar que as crianças comessem o açúcar. Elas iam atrás do produto porque estavam com fome.

Desde 1995, quando o Brasil reconheceu a persistência de formas contemporâneas de escravidão, mais de 56 mil pessoas foram libertadas pelo governo brasileiro.

Auxílio emergencial retorna com valor insuficiente

O governo Jair Bolsonaro demorou 96 dias para retomar o pagamento do auxílio emergencial, interrompido na virada do ano mesmo diante de apelos de congressistas e governadores e do alerta da comunidade científica sobre a letalidade da segunda onda da covid-19.

Consequentemente, a falta de recursos para subsistência dificultou o isolamento social de trabalhadores em meio à escalada de mortes.

Enquanto na primeira onda da doença, muito menos letal, o benefício começou com R$ 600/1200 por domicílio por mês, e depois passou a R$ 300/600, agora, o valor é de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375.

Com R$ 150 é possível comprar apenas 23% da cesta básica em São Paulo, 29%, em Belém e 31%, em Salvador, de acordo com levantamento mensal feito pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).