Trump prova que 'pablobolsonarismo' é universal e não só brasileiro
As mudanças no perfil do eleitorado republicano nos Estados Unidos, que contribuíram com a vitória de Donald Trump, permitem uma comparação com o comportamento do eleitorado que já votou no PT em São Paulo mas, no pleito deste ano, migrou para a direita de Pablo Marçal.
Trump já havia conseguido fisgar uma parte da classe trabalhadora branca pobre em 2016 e 2020, ressentida que empregos de qualidade migraram para a Ásia com a globalização. Agora, ele conseguiu uma parcela dos votos dos negros e latinos. Os três grupos estiveram historicamente com os democratas.
Hillary Clinton venceu Trump entre os latinos, em 2016, por uma margem de 38 pontos. Joe Biden ficou 33 pontos a frente dele nesse grupo em 2020. Agora, as pesquisas de boca de urna, desta terça (5), apontam que a margem de Kamala Harris nesse estrato foi de apenas oito pontos, 53% a 45%.
Trump foi duramente criticado por conta do discurso racista e xenófobo durante a campanha. No mês passado, durante seu comício em Nova York, o comediante (sic) Tony Hinchcliffe descreveu o território norte-americano de Porto Rico como "uma ilha flutuante de lixo no meio do oceano". Isso gerou repúdio, mas não impactou significativamente a intenção de voto.
O grupo dos latinos e dos negros não age de forma monolítica. Uma parcela abraça os democratas por empunharem a bandeira da igualdade nas eleições. Outra, contudo, de perfil conservador, se identifica com o trumpismo em dimensões como direito ao aborto, religião e imigração.
Pode parecer estranho para quem é migrante latino concordar com a promessa de Trump de deportação em massa de quem não tiver documento de permanência. Mas é comum, ao longo da história e em diferentes países, indivíduos abraçarem bandeiras progressistas quando estão reivindicando direitos e, após conquistá-los, passarem a defender pautas mais conservadoras.
Pois, ele toma para si os valores e visões da classe ou grupo social do qual ele passou a fazer parte ou à qual ele aspira pertencer. No caso dos migrantes latinos, muitos começam a defender que é necessário evitar que venham outros, inclusive compatriotas, que vão "roubar empregos", "sobrecarregar serviços públicos" e "causar violência".
Eleições do ressentimento nos EUA e no Brasil
O Partido dos Trabalhadores quebrou a cabeça para tentar entender o motivo pelo qual uma parcela da sociedade, que foi içada da pobreza em suas gestões nacionais entre 2003 e 2012, foi às ruas em 2013 e 2014 para protestar contra o governo. Parte do partido crê que isso foi apenas um ataque direto e planejado contra o partido. Parte entendeu, contudo, que também havia uma nova "nova classe média" que ascendeu ao consumo e estava ressentida porque, apesar de ter geladeiras e TVs, não conseguia acesso a bons hospitais, a boas escolas, a viagens para fora do país e a outros elementos da classe média (alta) no Brasil.
Com o tempo, esses ressentidos radicalizaram-se, foram às ruas pelo impeachment de Dilma Rousseff, apoiaram a Lava Jato e elegeram Bolsonaro em 2018. Uma parte deles, neste ano, foi para o colo do ex-coach Pablo Marçal.
Bairros da zona leste de São Paulo, que já votaram com o PT, deram seu voto no primeiro turno para Marçal sintonizados com seu discurso de prosperidade e com a promessa de que todo mundo pode ter e, dessa forma, ser. É o eleitorado que, um dia, seguiu a visão das comunidades eclesiais de base de ter uma casa própria em qualquer lugar e, hoje, sonha em poder comprar um apartamento no Jardim Anália Franco ou no Itaim Bibi.
O PT também perdeu eleitorado na Zona Sul, por obra da ação dos líderes comunitários conectados à base de vereadores de Ricardo Nunes. Em entrevistas à imprensa durante a campanha, alguns disseram que já foram de esquerda, mas acabaram conectados à máquina de distribuição de recursos do centrão - que banca centros comunitários e campos de futebol e atende a demandas dos moradores.
Isso se traduziu na votação de Guilherme Boulos (PSOL), aliado do PT, que venceu em apenas três das 57 zonas eleitorais do município no segundo turno.
Ascensão do populismo de extrema direita
Voltando aos Estados Unidos, a mudança demográfica que colocou trabalhadores pobres, negros e latinos na base de Trump pode chancelar a ascensão de um populismo de extrema direita. Isso representa a refundação do Partido Republicano, mas também forçará uma mudança no Partido Democrata - que verá parte de sua base tradicional sequestrada. De qualquer forma, os EUA nunca mais serão os mesmos.
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Quero receberPodemos estar vendo, inclusive, uma mudança nas grandes fortalezas democratas, que podem virar estados-pêndulo a partir da próxima eleição, principalmente em estados em que se esperava larga vantagem de Kamala, mas, ao final, Trump chegou muito perto.
Da mesma forma, há uma mudança naquilo que deseja parte significativa dos eleitores da periferia de grandes cidades, como São Paulo, e uma dificuldade da esquerda de entregar propostas e sonhos relacionados a esses desejos materiais. Isso pode levar a esses bairros-pêndulo irem definitivamente para a direita e a extrema direita.
Em tempo: coincidentemente, o prefeito Ricardo Nunes parabenizou Donald Trump pela vitória em sua conta no Instagram, uma ação mais voltada ao seu eleitorado do que aos olhos do presidente eleito. "Make America Great Again", postou. Hoje, chove forte em São Paulo e a luz foi interrompida em vários locais.