Aluguel impagável elegeu Trump, churrasco caro pode derrotar Lula
Trump venceu a eleição tanto no Colégio Eleitoral quanto no voto popular, algo que não havia feito em 2016, surfando mais a insatisfação com a alta no custo de vida dos trabalhadores do que o ódio contra o "inimigo externo", no caso, os imigrantes. O surto inflacionário causado pela pandemia não existe mais, mas os preços estabilizaram-se em um patamar alto, com destaque para aluguéis e hipotecas. Poucas coisas são tão traumatizantes para uma família quanto um despejo.
Sua campanha foi bastante competente em vender a interpretação falsa de que o país estava à beira do precipício. Contou com a ajuda de uma quantidade de desinformação difundida nos subterrâneos por atores russos e às claras por Elon Musk — que se tornou, nesse período, a maior fonte de fake news dos EUA através do impulsionamento desleal de suas postagens no X.
Kamala Harris não conseguiu transformar indicadores econômicos em percepção de qualidade de vida. E o governo do qual fazia parte tinha o que mostrar: levou o desemprego a 4,1% em setembro (praticamente pleno emprego), os salários cresceram a 3,9% em um ano, a renda disponível per capita aumenta todos os meses há mais de dois anos, o Produto Interno Bruto cresceu 2,8% no último trimestre, os gastos dos consumidores, que respondem pela maior parte da economia, aumentou 3,7% no último trimestre.
Quem depende de aluguel ou refinanciou a sua casa através de uma hipoteca compromete boa parte da renda com moradia. Muita gente está tendo que deixar sua casa, indo para mais longe ou em residências menores e até precárias. Isso é a antítese do incensado sonho americano. Sem contar que os juros demoraram para começar a cair - o que, em um país em que todos compram tudo a prazo, de carro a celular, isso é péssimo para o humor coletivo.
Ironicamente, se Trump colocar em prática suas promessas, como barreiras protecionistas a importações, elas terão consequências inflacionárias, o que vai aumentar ainda mais o custo de vida e reverter a curva de queda dos juros. Mas, daí, Inês é morta e Donald é presidente.
Nesta semana, fiz aqui uma análise apontando que a lição que o governo Lula precisa tirar da tentativa democrata de se manter no poder é baixar os preços. É a percepção de custo de vida alto, principalmente entre os alimentos, que vem mantendo a popularidade de Lula em baixa. Não são as críticas dele ao governo de Israel ou a tentativa fracassada de mediar o conflito na Venezuela, mas o preço do arroz e do feijão.
Com uma taxa de 6,4%, a atual administração resvala no menor desemprego desde que começou a PNAD Contínua, do IBGE, em 2012, a renda média dos trabalhadores também aumentou no último ano, com a volta do aumento do salário mínimo acima da inflação e o PIB deve crescer mais do que 3%, superando as expectativas.
O ano passado teve inflação menor e dentro do teto da meta (4,62%), mas isso não significa que os preços voltaram a patamares anteriores ao salto inflacionário de 2021 (10,06%) e 2022 (5,79%) sob o governo Jair Bolsonaro. Sim, tal como nos Estados Unidos, a inflação está relativamente controlada, mas tudo segue caro.
No final do dia, a classe trabalhadora não está muito interessada em quem tentou golpe de Estado em 6 de janeiro de 2021, em Washington DC, ou em 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Também importa pouco para a formação do voto se Trump pagou suborno com dinheiro de campanha para uma atriz pornô com quem teve um caso ou se Bolsonaro surrupiou joias doadas por ditaduras árabes e depois as vendeu para ajudar a mantê-lo nos EUA enquanto a tentativa de golpe rolava no Brasil. Tirando os loucos que querem a implantacão do fascismo lá e aqui, o voto da maioria tem dimensões mais pragmáticas.
Da mesma forma, acusar um adversário de organizar uma máfia para roubar dinheiro de creches não rende tanto voto quanto mostrar creches que foram erguidas, mesmo roubando-se dinheiro.
Sim, a lente ideológica tem limites diante do pragmatismo do naco não polarizado da população — se o poder de compra dispara, não tem como alguém perder uma eleição. Lula foi reeleito em 2006 mesmo com o escândalo do mensalão porque a economia crescia e o povo comprava geladeira, frango e dentadura. Com a melhora na qualidade de vida, terminou seu segundo mandato com 87% de aprovação, segundo o Ibope.
Como já disse aqui, 2026 não é 2006 e não será 2022. A diferença entre Lula e Bolsonaro foi de pouco mais de 2 milhões de votos, o país está mais polarizado hoje do que antes, e o ruído provocado pela desinformação e o golpismo ainda são ensurdecedores.
Mas uma boa parte dos eleitores não está em guerra contra o petista, ao contrário do que acontece com o naco de extrema direita. Ele espera de Lula que cumpra as promessas de campanha. Com picanha e cerveja, mas principalmente com arroz e feijão.
Não vai ser fácil. Sabe qual é o setor mais dependente de estabilidade climática? A produção de alimentos.
Por exemplo, os eventos climáticos extremos, que provocaram tempestades e secas, além de fatores como a alta na demanda externa, o dólar valorizado e o mercado interno aquecido, jogaram a arroba do boi lá em cima neste final do ano. Isso após mais de um ano e meio de preços de carnes em queda que fizeram a alegria do churrasco de final de semana.
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Quero receberPara garantir que ele se reeleja ou aponte um sucessor em 2026, os trabalhadores vão ter que perceber a melhora na qualidade de vida. O que passa pelo crivo do caixa do supermercado.
Não surtiu efeito os alertas para o risco que o, agora, presidente eleito representa à democracia através da lembrança do ataque golpista ao Capitólio, do retrocesso no direito ao aborto e da erosão dos direitos civis — como a ameaça de Trump de usar as Forças Armadas contra cidadãos norte-americanos e de deportação em massa. Trump também explorou o ressentimento da migração de empregos de qualidade para a China, fisgando trabalhadores que, até hoje, esperam para colher os prometidos frutos da globalização.
Kamala Harris não conseguiu mostrar que a vida melhorou sob o governo do qual foi vice e perdeu. A ver se Lula conseguirá.