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Leonardo Sakamoto

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Apagão expõe fragilidade do setor elétrico e revive trauma do racionamento

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

28/05/2021 20h05

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Resumo da notícia

  • Duas décadas após o maior racionamento de sua história, Brasil volta a enfrentar apagão, falta de energia, enquanto avança privatização da Eletrobras

Por Roberto Rockmann e Lúcio Mattos, especial para a coluna*

Um problema na linha de transmissão que escoa energia da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, para o Sudeste deixou vários Estados sem energia elétrica nesta sexta (28). Isso ocorre em uma semana em que o governo federal já tinha publicado um alerta de emergência hídrica para o período de junho a setembro em cinco Estados brasileiros: Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná.

A fragilidade do setor elétrico veio à tona. Vinte anos depois, a ameaça de um novo racionamento de energia voltou aos noticiários e às conversas de empresários.

Em maio de 2001, o consultor Mario Veiga foi chamado a uma reunião em Brasília com o então ministro-chefe da Casa Civil, Pedro Parente. O braço-direito do presidente Fernando Henrique Cardoso estava preocupado com o iminente racionamento de energia elétrica que prometia colocar em xeque a governabilidade do país. Veiga explicou que a situação era crítica.

Desde 1999, o país confiava em São Pedro para driblar a escassez nas represas das usinas, mas naquele momento o período chuvoso já terminara e os reservatórios das hidrelétricas estavam na casa dos 30% da capacidade, o que significava que o Brasil não teria eletricidade suficiente para atravessar aquele ano. "Deus é mais, Deus é pai, Deus cansou", disse ao ministro.

O governo tentou encontrar uma saída para o problema que ameaçava jogar por terra mais de sete anos de esforços pela estabilização econômica, desde o lançamento do Plano Real, em 1994. A alternativa inicial era imitar o que se fazia na Califórnia (EUA), que passara por problema semelhante, e aplicar blecautes rotativos que deixariam bairros e até cidades inteiras às escuras, receita perfeita para mergulhar no caos grandes capitais.

Após muita discussão, encontrou-se uma saída melhor: por que não apostar que a população poderia economizar sob a ameaça de multas? Em 18 de maio, pela televisão, os brasileiros foram informados que teriam de reduzir seu consumo de energia em 20%, com base em uma média dos gastos nos meses de maio, junho e julho do ano anterior. Quem não cumprisse a meta pagava multa e, em caso de reincidência, podia ter a luz cortada.

A partir daquele momento, quase todo mundo fez contas (só o Sul ficou de fora, porque naquele ano a hidrologia foi favorável à região e não havia linhas de transmissão com capacidade suficiente para escoar energia para o Sudeste). Freezers foram desligados, lâmpadas incandescentes retiradas ou substituídas por outras fluorescentes. Quem pôde trocou o chuveiro elétrico por um equipamento a gás. Comércio e indústrias também tiveram que reduzir seu consumo entre 15% e 25%.

Para driblar eventuais problemas, o governo criou um órgão supraministerial e com poderes terminativos. Nasceu a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, confiada a Pedro Parente, que logo percebeu que a situação só poderia ser superada com coordenação, diálogo e boa comunicação. Insistiu com os marqueteiros para manter a palavra "crise" no nome da Câmara de Gestão, por entender que, se o objetivo era fazer a população colaborar, seria essencial deixar clara a gravidade do problema.

Foi um longo ano, mas, em fevereiro de 2002, o presidente Fernando Henrique anunciou o fim do racionamento, que deixou cicatrizes. O PIB (Produto Interno Bruto) avançou apenas 1,5% em 2001, ante previsões iniciais de 4%. A popularidade de FHC despencou. Após ver suas expectativas frustradas em duas eleições presidenciais, Luís Inácio Lula da Silva se elegeu com uma campanha em que pregava a retomada do planejamento pelo Estado, a eliminação do mercado livre e o fim da privatização, com o fortalecimento da Eletrobras.

Pressionado por empresários preocupados com a guinada à esquerda, Lula indicou a secretária de Energia do Rio Grande do Sul, Dilma Rousseff, para a pasta de Minas e Energia. Aos poucos, Dilma percebeu que seria preciso encontrar um caminho do meio. Por indicação de Pedro Parente, a ministra ligou para Mario Veiga, consultor de visão liberal que tinha colaborado com o governo FHC. As privatizações foram congeladas, mas o mercado livre foi mantido - e floresceu.

Agora, 20 anos depois, o Brasil se vê de novo diante de um cenário que com semelhanças com o anterior: reservatórios em níveis mínimos históricos, debates sobre a privatização da Eletrobras e Ministério de Minas e Energia comandado por uma pessoa sem experiência no setor.

O período chuvoso acabou e os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste estão vazios, em 32% da capacidade. A matriz, porém, é bem diferente. Hoje o país conta com usinas térmicas a gás, eólicas e solares. Em 2001, as hidrelétricas respondiam por 90% da energia gerada e atualmente fornecem dois terços do total. O risco de um novo racionamento, portanto, é considerado baixo pelos especialistas, mas o impacto no bolso do consumidor parece garantido.

Em maio as contas de luz já refletem o acionamento de usinas térmicas a gás natural, mais caras que hidrelétricas. Reajustes perto de 10% nesse ano e 2022 estão próximos. Assim como há 20 anos, políticos influenciam o debate econômico.

Após duas décadas paralisado, o processo de privatização avança, com a aprovação em 19 de maio na Câmara dos Deputados da autorização de a União deixar o controle da Eletrobras, que detém um terço da geração e transmissão do país. O assunto, que recebeu alguns acréscimos de parlamentares em pontos que nada têm a ver com a estatal, chegará essa semana ao Senado.

Emendas incluídas pelos deputados poderão encarecer em mais de 10% a conta de luz nos próximos anos, segundo dez entidades do setor elétrico, que se manifestaram preocupadas com a tramitação do projeto.

"Um tema eminentemente técnico e complexo estará sendo decidido ao sabor da pressão de lobbies e não de estudiosos", escreveu recentemente em e-mail a amigos o ex-presidente da estatal José Luiz Alquéres. "Por olhar sempre o futuro e pelo seu peso, a Eletrobras não pode ser transferida em bloco, como um quase monopólio público para se transformar num monopólio privado. Isso vai produzir um substancial desequilíbrio pela concentração de mercado resultante, como estudos de consultores independentes apontam."

Há 20 anos, a privatização da Eletrobras caiu por terra diante do racionamento. Fica a dúvida se a crise atual irá derrubar novamente o processo. Como dizia Mario Veiga já em 2001, com o Brasil até a paciência divina tem limite.

(*) Os jornalistas Roberto Rockmann e Lúcio Mattos são autores de "Curto-circuito - quando o Brasil quase ficou às escuras", edição independente, em que narram os bastidores do racionamento de 2001, a mais grave crise antes da pandemia.