Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Diante de 500 mil mortos, ministro pede que olhemos o lado bom da vida
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Em uma releitura da épica cena final de "A Vida de Brian", clássico da comédia produzido pelo grupo inglês Monty Python, o ministro das Comunicações Fábio Faria (PSD) praticamente pediu aos brasileiros que olhassem o lado bom da vida no dia em que ultrapassamos as 500 mil mortes por covid-19.
"Em breve vcs verão políticos, artistas e jornalistas 'lamentando' o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do 'quanto pior, melhor'. Infelizmente, eles torcem pelo vírus", tuitou, neste sábado (19), nas redes sociais.
Na cena final, à beira da morte, Brian, o protagonista do filme, é chamado a ver o lado bom de tudo aquilo. Dezenas de condenados fazem um coro com ele, cantando e assobiando "Always Look On The Bright Side", uma música feliz.
O filme do Monty Python é uma forte crítica ao fanatismo nos tempos modernos e uma sugestão para não seguirmos incondicionalmente outras pessoas e ideias. O que cabe como uma luva para esta era de berrante e rebanho.
A questão é que choramos os 500 mil mortos porque uma boa parte deles não são uma fatalidade, mas resultado de um projeto. Atuando diligentemente para atrasar a compra de vacinas, desincentivar o uso de máscaras, sabotar o isolamento social e promover remédios inúteis contra a doença, Bolsonaro estendeu desnecessariamente a duração da pandemia achando que iria encurtá-la.
Quem adotou o "quanto pior, melhor", na verdade, foi o presidente da República, que atuou para uma contaminação ampla da população, visando a uma imunidade coletiva que nunca chegaria, uma vez que o coronavírus sofre mutações e mata reinfectados. E, ainda que fosse possível, centenas de milhares a mais morreriam se a estratégia de Bolsonaro não sofresse resistência.
Foi ele, portanto, quem torceu pelo vírus, ajudando-o a dilacerar famílias e produzir desempregados - 14,8 milhões deles, para ser mais exato, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua.
Em nossa pior guerra, tivemos o azar de ter no comando um capitão que só pensa em terceirizar responsabilidades a prefeitos e governadores para chegar com chances na eleição de outubro de 2022.
O discurso do ministro vai ao encontro do usado pelo presidente em outras ocasiões. No dia 11 de fevereiro, o presidente já havia nos sugerido engolir a tristeza: "Não adianta ficar em casa chorando, não vai chegar a lugar nenhum", afirmou. E em 7 de abril, repetiu a dose para que não ficassem dúvidas: "Não vamos chorar o leite derramado". Mortos por covid viraram leite derramado.
Muitos dos que foram às ruas protestar contra Bolsonaro em centenas de cidades de todo o país, neste sábado, queriam transformar a dor de seu luto em força para mudança, pressionando por uma saída do governo ou, pelo menos, para que ele abandone sua necropolítica a fim de que outros 500 mil mortos não se tornem realidade.
Já não bastasse levarem nosso direito à vida e ao emprego, também nos roubam o nosso sagrado direito ao luto.
Ou como resumiu Chico Buarque, aniversariante do dia:
"O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá."