Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
'Só Deus me tira do cargo', diz Bolsonaro. Lira e Aras agradecem o elogio
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Ao deixar o hospital na manhã deste domingo (18), após tratar de uma obstrução intestinal, Jair Bolsonaro repetiu que só a intervenção divina o removeria do cargo. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e o procurador-geral da República, Augusto Aras, devem ter ficado lisonjeados com o elogio.
"Querem derrubar o governo? Já disse, só Deus me tira daquela cadeira. Será que não entenderam que só Deus me tira daquela cadeira", afirmou.
Tivesse o presidente um histórico de democrata, a declaração seria vista apenas como uma boba reafirmação sobre sua saúde. Mas como não é o caso, fica mais uma vez a impressão de que ele quer se perpetuar na função, reforçando as declarações golpistas que ele vem dando quanto à eleição de 2022.
A questão é que o milagre que mantém Bolsonaro no cargo, mesmo acusado de mais de duas dezenas de crimes de responsabilidade e com 126 pedidos de impeachment apresentados, não é operado nem pelo Pai, nem pelo Filho, muito menos pelo Espírito Santo. Mas por Santo Arthur e por Santo Augusto.
O presidente da Câmara mantém o impeachment em um limbo político, sem engavetar, nem dar prosseguimento a nenhum dos pedidos. Dessa forma, mantém Bolsonaro sob rédea curta, atendendo às necessidades do centrão em emendas, cargos e apoio a projetos de lei e mudanças infralegais que interessam aos grupos que ele representa.
Lira, representante do interesse de centenas de deputados que arrendaram o apoio ao presidente, diz que falta "materialidade" aos crimes de responsabilidade e que um processo não teria apoio da casa neste momento. Traduzindo: por que uma boa parte do Congresso Nacional iria querer sacrificar sua galinha dos ovos de ouro se, quanto mais vulnerável, mais Jair entrega?
Como há um viés de melhor na economia, o que reduz a insatisfação do empresariado, e as grandes manifestações ainda não são grandes, nem frequentes o bastante para pressionar o parlamento, segue o jogo.
Ao mesmo tempo, Augusto Aras, desejoso de uma indicação a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, tem colocado a Procuradoria-Geral da República como escudeira dos interesses pessoais do presidente da República. Há fartos elementos para que uma denúncia seja feita ao STF por crimes cometidos por Bolsonaro antes e durante a pandemia, o que faria com que, pelo menos, a Câmara se pronunciasse em sua cumplicidade. Mas ele já deixou claro que, se depender dele, nada vai sair de lá.
Diante de uma PGR que agiu como espectadora das ações do Poder Executivo, omitindo-se de suas funções constitucionais, a ministra Rosa Weber teve que constranger publicamente o órgão a abrir um inquérito, transformando noticia-crime apresentada por senadores em investigação para entender se Bolsonaro prevaricou ao ignorar informações sobre a corrupção na compra da Covaxin.
Sentindo-se livre, leve e solto, o presidente segue atacando as instituições. Não à toa, ao deixar o hospital, aproveitou para bombardear novamente nosso sistema de votação e a Justiça Eleitoral. Falou em fraudes e disse que os contrários à introdução do voto impresso querem impedir que a eleição seja auditável. Uma dupla mentira, pois ele não apresenta uma mísera prova sequer e ignora que o sistema eletrônico de votação já é auditável e nunca demonstrou falhas que comprometessem o resultado do desejo popular.
Da mesma forma que usou sua doença para faturar politicamente, ele utiliza a saída do hospital para, mais uma vez, atiçar seus seguidores mais fiéis e preparar terreno para o golpismo em caso de derrota nas eleições do ano que vem, além de jogar uma cortina de fumaça sobre as más notícias de hoje, como as denúncias de corrupção envolvendo a compra de vacinas pelo Ministério da Saúde e as rachadinhas de sua família.
Há quem tenha acreditado que ele se acalmaria após a conversa com o presidente do STF, da mesma forma que existem adultos que acreditam em Papai Noel. Após uma semana em que ameaçou um golpe eleitoral, usou expressões chulas para se referir às investigações da CPI da Covid, xingou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, incentivou a intimidação do Senado pelas Forças Armadas, Jair ganhou um cafezinho de Luiz Fux e uma nova tentativa de reconciliação. Ressalte-se que o papel do ministro seria cuidar da Constituição, não passar pano para um presidente.
Após testar limites, Bolsonaro sempre puxa o freio, apaziguando membros de outros poderes e gerando análises do tipo "ele foi contido" em uma parte da opinião pública. Em questão de dias, recomeça tudo novamente. Neste caso, voltou à carga através de postagens enquanto internado. Agora, completa o serviço com uma coletiva à imprensa, em frente ao hospital. Detalhe: sem máscara de proteção.
E para que não haja dúvidas de suas intenções, ele ainda aproveitou para defender remédios que até o próprio Ministério da Saúde já considerou ineficazes para o tratamento da covid.
"O que me surpreende é de ver o mundo, alguns países investindo em remédio para curar a covid, e aqui, quando você fala de cura para covid, parece que você é criminoso. Não pode falar em cloroquina, ivermectina", disse.
Poder, pode. Mas não funciona e só fará mal à população. Tal como a guerra que ele trava diariamente, seja de uma cama de hospital, da cadeira no Palácio do Planalto ou em pré-campanha eleitoral em algum lugar do Brasil, viajando com nossos impostos.