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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Decisão de omitir ao público dados sobre o Enem veio do presidente do Inep

Letícia Mutchnik/UOL
Imagem: Letícia Mutchnik/UOL

Colunista do UOL

22/02/2022 15h14Atualizada em 22/02/2022 20h31

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O Ministério da Educação removeu do ar anos de dados relativos ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e ao Censo Escolar da Educação Básica que permitiam a pesquisadores avaliarem a eficácia de políticas públicas e a própria gestão do governo federal. Usou como justificativa a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A ordem partiu de Danilo Dupas Ribeiro, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão subordinado ao MEC, chefiado por Milton Ribeiro, em documento assinado na última sexta (18).

No ofício circular 0869295/2022/AGGE/GAB-INEP, Dupas solicitou "a retirada, do portal do Inep, de todos os microdados até agora publicados para a respectiva adequação ao modelo simplificado para posterior publicação" e a publicação dos dados do Enem 2020 e do Censo 2021 nesse novo formato.

Segundo os técnicos do órgão ouvidos pela coluna, os dados que estavam disponíveis já eram anônimos e o "modelo simplificado" usado a partir de agora dificulta a análise do desempenho de estudantes e escolas, por raça ou classe social, por exemplo, o que é fundamental para monitorar os avanços e retrocessos na educação em nível local.

Os dados no formato simplificado do Enem 2020 e do Censo Escolar de 2021, divulgados na sexta, também possuem menos campos de informação que os divulgados nos anos anteriores.

O Inep informou que a reformulação visa a "suprimir a possibilidade de identificação de pessoas" em atendimento à LGPD. E que, com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, chegou à conclusão de que havia risco de que identidades de estudantes fossem descobertas mesmo nos casos de dados que haviam sido tratados para ficarem anônimos.

Em resposta aos questionamentos da coluna, enviada após a publicação da matéria, o instituto afirmou que as mudanças nos dados que estavam disponíveis em seu portal estão sendo realizadas com base em estudos técnicos e análises jurídicas para atender à legislação. E que um cronograma com datas para o retorno dos microdados será divulgado em breve.

Haddad diz que mudança vai prejudicar o desenvolvimento da educação

Na avaliação do ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT) à coluna, "não existe absolutamente nenhuma contradição entre a Lei Geral de Proteção de Dados e a Lei de Acesso à Informação". A LGPD garante tratamento adequado e proteção às informações pessoais de cada um e a LAI efetiva o direito à transparência de dados públicos.

"Na minha época como ministro, quando montamos os bancos de microdados no Inep, isso já havia sido resolvido. Eles já não permitiam a identificação de professores e alunos, nem de sua performance individual", afirmou.

De acordo com Haddad, sem acesso aos microdados no formato anteriormente disponível, a pesquisa educacional como vinha sendo feita no Brasil vai acabar. "Com eles, é possível isolar a aplicação de determinada nova tecnologia educacional em determinada escola e, dessa forma, analisar se vale disseminá-la ou não", exemplifica.

Técnicos do Inep e do MEC ouvidos pela coluna reforçam o que disse Haddad e avaliam que o risco de que os dados sejam processados com métodos especiais para tentar obter a reidentificação dos estudantes é muito menor do que o impacto negativo da exclusão dessas informações para a sociedade.

Uma força-tarefa foi criada, em outubro de 2020, para discutir a adaptação do Inep à LGPD, competência depois repassada à sua Assessoria de Governança e Gestão Estratégica. A proposta do "modelo simplificado" para a divulgação de dados surgiu desse processo.

E apesar do assunto estar sendo discutido há anos, o Inep e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que zela pelo cumprimento da LGPD, decidiram constituir um "grupo de trabalho para discutir o tema" apenas no último dia 11.

O instituto informou à coluna que tem o dever de suspender a divulgação de dados que apresentem risco de violação à legislação, pois, caso contrário, poderia responder por "improbidade, omissão e ilegalidade".

Governo Bolsonaro também usou LGPD quando dificultou acesso a dados sobre trabalho escravo

A autarquia ligada ao Ministério da Educação defendeu que "as pesquisas com a utilização dos dados tratados pelo Inep, eventualmente restringidos nos microdados, não estão inviabilizadas". E que essas informações poderão ser requisitadas através do serviço de acesso a dados protegidos, seguindo um protocolo.

A instituição prometeu apresentar uma forma de expandir a disponibilização de dados por meio de parcerias com instituições federais de educação superior.

Mesmo assim, a mudança vem sendo vista como a imposição de uma dificuldade burocrática que pode limitar pesquisas. Um grupo de mais de 30 entidades da sociedade civil e movimentos ligados à educação, como a Associação Brasileira de Alfabetização, a Ação Educativa e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, divulgaram uma carta afirmando que encararam a supressão de informações "com extrema preocupação e inquietação".

De acordo com elas, "utilizar a LGPD como justificativa genérica para o descarte dos microdados do Censo Escolar carece de fundamento legal".

"É um crime contra a ciência. E, obviamente, um crime contra a gestão pública. Porque os gestores da educação precisam de respostas da ciência para poderem se mover. Se não tiverem uma bússola, vão perder tempo", afirma Haddad.

O governo Jair Bolsonaro (PL) já estava sendo alvo de críticas com relação à aplicação da LGPD sobre dados públicos, como os relativos a resgates de trabalhadores em condições análogas às de escravo.

O cadastro de empregadores responsabilizados por esse crime, conhecido como "lista suja", continua público. Mas a requisição de dados sobre resgates vem sendo negados. O governo diz que não conta com recursos humanos para suprimir as informações pessoais dos trabalhadores envolvidos e, portanto, não pode conceder os dados. Pesquisadores e organizações da sociedade civil afirmam, contudo, que, antes os dados, eram anonimizados e disponibilizados.