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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Áudio do STM de 46 anos atrás mostra que polícia herdou tortura da ditadura

O açougueiro-torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra - Sérgio Lima/Folhapress
O açougueiro-torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra Imagem: Sérgio Lima/Folhapress

Colunista do UOL

17/04/2022 13h02

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"Já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e tudo isso é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes."

A declaração não foi dada, nesta semana, por um ativista dos direitos humanos ao tratar da tortura de algum morador pobre e negro de qualquer periferia de grande cidade pelas mãos da polícia para confessar o que não fez, mas pelo almirante Júlio de Sá Bierrenbach, em 19 de outubro de 1976, diante de um caso de tortura como instrumento de investigação (sic) da ditadura militar.

A atualidade do texto de 46 anos atrás não é coincidência, mas decorrência de um país que não resolveu as feridas abertas durante a ditadura. E, se depender do atual governo, que trata torturadores como heróis nacionais, como é o caso do falecido coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, não irá resolver tão cedo.

O historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teve acesso a mais de 10 mil horas de gravações de sessões do Superior Tribunal Militar, entre 1975 e 1985, obtidas através de pedido à Justiça do advogado Fernando Augusto Fernandes. Nelas, ministros da corte reconhecem, repudiam ou duvidam de denúncias de torturas através do aparato de Estado. A coluna de Miriam Leitão, em O Globo, trouxe, neste domingo (17), o conteúdo de alguns desses áudios.

Um deles é o de Bierrenbach. "Longe de contribuírem para a elucidação dos delitos, invalidam processos, trazendo para os tribunais a incerteza sobre o crime e a certeza sobre a violência. A ação nefasta de uns tantos policiais estende a toda a classe, sem dúvida, na grande maioria, honesta, útil e laboriosa, um manto de suspeita no modo de proceder", afirma.

"O que não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado", avaliou o almirante já em 1976.

Durante as sessões de tortura realizadas no 36º Distrito Policial, local que abrigou a Oban (Operação Bandeirante) e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista, durante a ditadura, os vizinhos no bairro do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar.

Mas o sistema não parava. O sistema nunca para por conta própria. Ele precisa ser freado pelo resto da sociedade.

Tortura policial de hoje é herança da tortura da ditadura

A tortura firmava-se como arma da disputa ideológica na ditadura. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era e pelo que representava. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também um lugar de fala, uma visão de mundo, uma ideia.

Já entrevistei muitas pessoas que foram torturadas no antigo DOI-Codi, grupo repetidamente citado nos áudios analisados por Carlos Fico. Contaram-me que havia algo mais além da justificativa ideológica entre os torturadores, uma sensação de prazer no que faziam. Talvez esse prazer surja da sensação de poder. De fazer porque se pode fazer enquanto o outro nada pode.

O Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais. A tortura não nasceu com eles no Brasil, mas a metodologia desenvolvida durante esse período e a certeza do "tudo pode" continua provocando vítimas em delegacias e batalhões policiais espalhados pelo país e nas periferias das grandes cidades, onde a vida vale muito menos que nos bairros ricos.

Dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano. Muitos dos que fizeram o serviço sujo para a ditadura e passaram pelo prédio do DOI-Codi amavam isso. Sadismo que passou de geração em geração.

Um vídeo gravado por celular mostra o prazer no rosto de um policial que agredia jovens com um pedaço de pau. Acertou muitos deles no rosto, agindo indiscriminadamente. Atingiu até um rapaz que usava muletas para se locomover. Parecia se divertir. Segundo a Ponte Jornalismo, o vídeo foi obtido com um morador e retrata o 1º de dezembro de 2019, quando uma ação policial contra um baile funk terminou com nove jovens mortos na favela de Paraisópolis, em São Paulo.

Torturadores na ditadura não acreditavam simplesmente estar em uma guerra. Se assim fosse, haveria protocolos internacionais proibindo o que eles fizeram. Muito menos em uma missão divina porque Deus, se existir, nunca ouviu os gritos que saíram do Doi-Codi. O que havia nas celas era, para eles, a representação do mal. E o mal precisa ser extirpado, tal qual ouvimos hoje: que há pessoas ou grupos que representam o mal e precisam ser eliminados ou contidos.

Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao medo e, em seguida, à ignorância sobre o outro.

Moradores de comunidades pobres se tornaram o 'mal' a ser contido

Protocolos de ação policiais em comunidades (que afirmam que a dignidade deve ser preservada) são rasgados hoje diante do discurso que transforma moradores dessas localidades no "mal" - principalmente se tiveram a infelicidade de nascer com a "cor de pele errada". Afinal, essas pessoas juntam-se para corromper os valores dos "homens e mulheres de bem" em "perversão" atrapalhando "quem paga imposto".

O golpe de 1964 e a ditadura ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez.

O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, em manifestações de rua, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

Décadas depois, há quem tente provar que a história se repete sim, não como farsa, mas como delírio. Pois o torturado do caso analisado pelo almirante Bierrenbach é novamente torturado todos os dias no Brasil sob outros nomes, crenças, gêneros ou cores de pele. Normalmente, jovens, negros e pobres. Sub-humanos.

O cearense Tito de Alencar Lima foi encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar brasileira.

Frei Tito, contudo, continua sem descanso, morrendo "suicidado" como consequência de tortura de agentes do estado, "suicidado" em celas e camburões, "suicidado" em comunidades e assentamentos de todo o país. Já o seu torturador, Sérgio Paranhos Fleury, foi encontrado morto em 1979, aos 45 anos, possivelmente como "queima de arquivo", pois estaria ganhando dinheiro de empresários e com o crime organizado, não respondendo mais às estruturas de poder. Se vivesse hoje, seria certamente um relevante quadro do governo federal.

Policiais e militares não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem a qualquer preço.

Não há ordens diretas para matar negros e pobres da periferia dadas pelo comando do poder público. Mas nem precisaria.

As forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio ou São Paulo, são treinadas para, em primeiro lugar, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Segundo, com governos apoiando a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade diante da tortura ajuda a agir sem pensar nas consequências.

A tortura, abençoada com a impunidade, se tornou parte do Brasil

As gravações do STM são um documento valioso para provar que o Estado tortura e mata e, pior, tem consciência disso. Sua versão contemporânea são os vídeos de celulares provando agressões, que agora são enviadas imediatamente a milhões nas telas de seus celulares.

Isso ajuda a diluir a violenta mentira do "tortura é algo que está na sua cabeça" ao passo que faz com que muitos se reconheçam no "já aconteceu algo semelhante comigo".

A tortura e execução do congolês Moïse Kabagambe a pauladas em um quiosque de praia no Rio de Janeiro, no início do ano, choca a estética de quem repete que nós não somos torturadores nem racistas - uma ficção limpinha e cheirosa criada para garantir que tudo fique como está. Enfileirou-se em uma longa lista de casos provocados pela sociedade.

Por exemplo, em abril de 2021, Bruno Barros e Yan Barros, tio e sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do supermercado Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro. Imagens deles rendidos após o furto circularam pelas redes. Os seguranças do mercado teriam sido entregues a traficantes para que fossem torturados e mortos.

Em 14 de fevereiro de 2019, Pedro Henrique Gonzaga foi morto por um segurança do supermercado Extra na mesma Barra da Tijuca do quiosque Tropicália, onde Moïse foi morto. Ele deu uma gravata e jogou seu peso sobre o jovem negro. Pessoas alertaram que Pedro estava sufocando, mas a sessão de tortura continuou. A mãe do rapaz presenciou a cena. Pedia para o segurança parar. Mas, como disse acima, o sistema nunca para.

Em julho de 2019, um jovem negro de 17 anos foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar um furto barras de chocolate de uma unidade do supermercado Ricoy na periferia de São Paulo. O mercado disse que os seguranças eram de uma empresa terceirizada - como sempre. Como em Abu Ghraib, no Iraque, os próprios algozes gravaram as cenas.

Em julho de 2015, um homem negro de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís (MA). Segundo a Polícia Civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido, amarrado nu em um poste e torturado até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas. O pelourinho, que canta alto na alma de parte dos brasileiros, falou mais alto.

Seria ótimo para a consciência dos brasileiros se os torturadores e assassinos fossem apenas demoníacas. Porque assim, o mal, estaria justificado e longe de nós. Mas são nossos amigos, colegas de trabalho, familiares ou nós mesmos, que reconstruímos diariamente em prática o sistema que leva até a normalização dessas torturas e mortes.

A morte e a tortura de pessoas negras pelas mãos do Estado, da iniciativa privada, de milicianos ou de outros cidadãos não vale o arranhão deixado na caçarola por uma noite de bateção de panelas. Na opinião de uma parte considerável, não há tortura no Brasil. Apenas "coincidência" e "azar", pessoas que "estavam no lugar errado e na hora errada, pois os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles."

Ou contamos essas histórias e discutamos essas imagens até que elas entrem nos ossos de nossas crianças para que elas conheçam o país que precisarão transformar ou a tortura e a morte continuarão acontecendo num Brasil que as considera uma necessária tarefa cotidiana de sua reprodução social.