Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Na falta de comida, Bolsonaro vende pacotão de fakenews a evangélicos no RJ
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Sem calçar as sandálias da humildade, Jair Bolsonaro se colocou como "o bem" na luta contra o "o mal" na tentativa de reter o voto conservador, neste sábado (2), em um evento evangélico no Rio de Janeiro. O presidente está preocupado que o derretimento do poder de compra e a queda da renda está fazendo com que parte do seu eleitorado de 2018 sinta saudade da comida na mesa e dos boletos pagos em dia sob o governo do petista.
Para isso, vendeu o combo completo, desinformando a audiência.
"O outro lado quer legalizar o aborto, nós não queremos. O outro lado quer legalizar as drogas, nós não queremos. O outro lado quer legalizar a 'ideologia de gênero', nós não queremos. O outro lado quer se aproximar de países comunistas, nós não queremos. O outro lado ataca a família, nós defendemos a família brasileira. O outro lado quer cercear as mídias sociais, nós queremos a liberdade das mídias sociais", afirmou.
Ao contrário do que diz o presidente, o aborto já é legalizado no Brasil, permitido nas situações de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia. Publicamente, Bolsonaro se mostrou a favor de criminalizar mesmo essas situações ao atacar, por exemplo, o aborto em uma menina de 11 anos que ficou grávida após ser estuprada em Santa Catarina. Mas, na vida particular, defendeu, em entrevistas em 2000 e 2018, que a decisão final cabe à mulher.
O petista não defende a legalização das drogas, mas é contra enviar jovens que consomem maconha para a prisão, afirmando que, nesses casos, a questão não é de polícia, mas de saúde pública - mesmo posicionamento que defende para a questão da interrupção da gravidez. Coloca-se pessoalmente contra desde a época que era presidente, mas a favor de buscar formas de evitar que mulheres pobres morram em procedimentos ilegais.
Presidente reclama de 'ideologia de gênero' após silenciar sobre assédio sexual na Caixa
O atual presidente insiste em uma confusão proposital sobre a tal "ideologia de gênero". Defende o discurso de religiosos ultraconservadores que dizem que é necessário censurar professores por estarem "ensinando crianças a serem gays, lésbicas e trans", quando estes estão apenas promovendo a equidade sexual e de gênero em sala de aula.
Na verdade, podemos chamar de "ideologia de gênero" o pacote construído e lapidado, ao longo da história, por nós, homens, principalmente os brancos e héteros, para forçar e justificar a dominação sobre as mulheres e a população LGBTQIA+. Sim, é irônico, mas ultraconservadores chamam de 'ideologia de gênero' justamente o questionamento da ideologia de gênero que rege o cotidiano como se fosse natural.
É a "ideologia de gênero", portanto, que naturaliza a mulher ganhar menos que o homem pela mesma função no trabalho; que relaciona apenas a ela as tarefas domésticas e o cuidado com as crianças e os idosos; que faz com que um presidente da República preste um silêncio solidário diante do assédio sexual praticado pelo presidente da Caixa contra funcionárias do banco e não seja questionado por isso.
Bolsonaro fala que a campanha do adversário quer aproximar o Brasil de países comunistas. É verdade que, durante sua gestão, Lula tinha boa relação com governantes à esquerda, mas também com governos à direita. A diplomacia brasileira sempre foi independente e pragmática, o que mudou com a chegada de Jair ao poder. Depois disso, passamos a ser vistos como um pária ambiental global e motivo de chacota em qualquer lugar civilizado.
Bolsonaro não deixa claro o que é "atacar a família". Provavelmente se refere à "tradicional família brasileira" - termo usado por grupos conservadores para criticar núcleos que não sejam formadas por um homem, uma mulher e seus filhos. A princípio parece um ataque aos lares homoafetivos, com dois pais e duas mães. Mas isso também ignora as milhões de famílias que têm conformações próprias - um avô e os netos, pessoas que moram sozinhas, mães solo. Lula não atacou famílias, mas já defendeu que não existe um modelo certo.
O candidato petista também não propôs censurar ou cercear as redes sociais, mas defende regulamentar as empresas que são proprietárias dessas plataformas para que obedeçam as leis de cada país e não sejam uma terra de ninguém.
Quem é contra que as redes obedeçam às leis é o presidente da República, que ficou indignado depois que o Tribunal Superior Eleitoral fez com que empresas como WhatsApp e Telegram prometessem adotar protocolos mínimos para não permitir que sejam usadas para manipular o debate público nas eleições de outubro.
Na disputa pelos pobres, Bolsonaro lembra aborto e Lula, churrasco
Parte significativa do público evangélico no Rio de Janeiro pertence às classes baixa e média baixa. Enquanto Lula tenta fisga-lo com a lembrança do acesso mais fácil à carne e ao leite na sua gestão, Bolsonaro atua para cativar o público atacando o direito ao aborto.
Os números das pesquisas mostram que a estratégia mais exitosa junto a esse público, que vai decidir a eleição, por enquanto, é a do petista.
Lula tem 48% e Bolsonaro, 27%, na pesquisa Datafolha. Olhando especificamente para o público que ganha até dois salários mínimos (que o instituto considera como 52% da população), a vantagem do petista sobe para 56% a 20%. Afinal, quem comprava picanha, agora compra coxa de frango. E quem comprava frango hoje vive de ovo.
O Datafolha também divulgou que 20% dos eleitores de Jair Bolsonaro optam por Lula caso não votem no atual presidente na eleição de outubro. Já 17% dos eleitores do ex-presidente escolhem Bolsonaro como segundo voto. Parte da explicação para isso é que existe um eleitor atraído tanto pela segurança material do legado de Lula quanto pelo discurso comportamental e de costumes de Bolsonaro.
Por mais que ambos os candidatos estejam com altos índices de voto consolidado, há uma parcela flutuante que ainda está em disputa. Da mesma forma, há uma parcela com comportamento semelhante que se encontra indecisa ou está optando, neste momento, por outros candidatos. E pode mudar de ideia.
Caso a situação da economia não melhore significativamente e Lula tome cuidados com as pegadinhas dos embates em pautas morais, simbólicas e de costumes, tudo fica como está, o que significará a vitória do petista.
Mas se a economia melhorar o suficiente sozinha ou os benefícios sociais da PEC da Compra dos Votos ajudarem no poder de compra, e a comida desaparecida voltar à mesa dos trabalhadores, Bolsonaro pode fisgar quem estava preocupado com sua sobrevivência material usando sua pauta de costumes. Daqui até as eleições, portanto, Jair deve aumentar a dose dos ataques.
O ponto é que Lula não é João Doria, nem Sergio Moro, massacrados pela máquina presidencial.
A preferência pelo ex-presidente, junto aos trabalhadores, não é baseada no que ele promete hoje, mas na lembrança de seu governo. Ele oferta a memória da carne e do leite, ou da "picanha e da cerveja" à mesa e tenta mostrar que não fez nos oito anos de seu governo nada do que Bolsonaro acusa que ele fará hoje quanto a costumes e comportamento.
Jair está indo para o tudo ou nada. E se houver golpe de Estado, não serão apenas os fatos e a economia que terão sido assassinados no meio do caminho.