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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pelé me salvou de ser preso por militares em uma guerra no Sudeste Asiático

Pelé morreu aos 82 anos, no dia 29 de dezembro de 2022                              - FRANCK FIFE / AFP
Pelé morreu aos 82 anos, no dia 29 de dezembro de 2022 Imagem: FRANCK FIFE / AFP

Colunista do UOL

30/12/2022 02h00

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Durante mais de 60 anos, brasileiros que desejavam conquistar a simpatia de seus interlocutores estrangeiros usaram e abusaram do nome de Pelé. Nos últimos quatro, caso quisessem atrair a piedade alheia citavam o de Bolsonaro - mas isso é outra história que acaba em menos de 48 horas.

Começar uma conversa falando do futebol de Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Romário e Zico sempre nos abriu portas em coberturas jornalísticas difíceis realizadas fora do país. Para mim, contudo, nenhuma "chave-mestra" foi capaz de destravar caminhos como a de Pelé.

Cobrindo a guerra pela independência de Timor-Leste, um pequeno e bravo país da Ásia, em 1998, passei ileso em postos de controle do Exército indonésio no interior da ilha por conta do rei do futebol.

Quando paravam o carro em que eu estava e me apontavam fuzis ao perceberem que era um estrangeiro no lugar errado, confesso que dizia "Saya tingal di Brasil! Saya teman di Pelé!" - algo como "Sou do Brasil! Amigo do Pelé!". Pode soar ridículo, mas essas são as frases que eu precisava saber em bahasa indonésio.

Claro que nunca tive o prazer de conhecer o mito, mas eles não sabiam disso.

Não importava o local, das estradas de terra dos vales de Maubessi, passando pela rodovia para Baucau até a entrada do mercado de Ermera, os soldados invasores conheciam o rei. E gostavam de ouvir sobre ele. Com a ajuda de um timorense que falava português, uma das línguas oficiais do país, eu os entretia, discorrendo sobre o Edson que nunca tive o prazer de ver jogar.

Para os casos mais difíceis, adotava uma arma secreta: um punhado de camisas da seleção (não oficiais, claro, chupa CBF), com o número 10 e o nome de Pelé, que eu havia levado do Brasil. Um velho militar que recebeu uma delas ficou tão grato que até avisou onde estaria o outro posto de controle mais adiante.

É incrível como uma marca como a de Pelé está vinculada à alegria, sendo capaz de, por um instante, fazer com que as pessoas se esquecessem do que estavam fazendo ali. E estamos falando de um Exército que ajudou em um dos maiores genocídios do século 20, com estimativas de mortos que chegam a mais de 40% da população no início do conflito, que durou 24 anos.

Ou se lembrassem de onde gostariam, de fato, de estar.

Daqui a 100 anos, o termo "Pelé" continuará sendo sinônimo de coisa boa, abrindo portas e sendo motivo de festa, fato pelo qual nós, brasileiros, deveríamos nos orgulhar.

Com a sua morte, o mundo, que se volta solidário a nós, lembra-se que o significado do Brasil é a alegria proporcionada pelo rei, e não a depressão causada pelo falso mito.