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Brasil resgatou 2,5 mil mulheres da escravidão desde 2003, diz ministério
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O Brasil resgatou 2.488 mulheres de condições análogas às de escravo desde 2003, de acordo com dados da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego. O número representa quase 5% do total de flagrados nessas condições no período. Celebra-se, nesta quarta (8), o Dia Internacional das Mulheres.
Desse total, 64% se declararam negras (pretas e pardas) - taxa maior que os 56% de negros na sociedade brasileira estimados pelo IBGE. Também foram resgatadas 22% de brancas, 11% de amarelas e 3% de indígenas.
Entre as vítimas de escravidão do sexo feminino, 37% nasceram na região Nordeste. Os estados que são os principais locais de nascimento são Maranhão e Minas Gerais (15%), Bahia (12%) e Pará e São Paulo (10%).
Enquanto isso, 31% delas residiam no Sudeste, sendo que as unidades da federação com maior residência das resgatadas são Pará (17%), Minas Gerais (16%), Bahia (11%), São Paulo (11%) e Maranhão (10%).
Quanto à idade, 55% têm entre 30 e 59 anos, 40%, entre 18 e 29, 4% menos de 18 anos e 1% tinha mais de 60. E à escolaridade: 37% contam com até o 5º ano do ensino fundamental incompleto, 18% com o 6º ao 9º incompletos e 18% são analfabetas.
O Estado brasileiro encontrou mais de 60 mil escravizados desde 1995. A partir de 2003, passou a pagar três parcelas de seguro-desemprego aos resgatados. A base de dados desse benefício, que engloba a maior parte das vítimas no período, tornou possível traçar o seu perfil.
Agropecuária foi principal palco de escravização de mulheres
A agropecuária em geral é identificada como a atividade principal das resgatadas (50%), seguida pelo trabalho na cozinha (8%), na lavoura de café (7%), trabalhadoras volantes na agricultura, que fazem serviços eventuais (6%) e trabalhadora da pecuária (5%).
Nos últimos anos, cresceu o número de operações de resgate de pessoas no serviço doméstico, cuja esmagadora maioria é composta de mulheres. Em 2020, foram três vítimas, em 2021, 31, e, em 2022, 31 novamente.
O caso mais emblemático no ano passado foi o de uma mulher de 84 anos resgatada de condições análogas às de escravo, em março, após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro. Nesse período, ela cuidou da casa e de seus moradores, todos os dias, sem receber salário, segundo a fiscalização.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho, essa é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o sistema de fiscalização para enfrentar esse crime.
Em outro caso, uma mulher que trabalhava há 32 anos como empregada doméstica foi resgatada da residência de um pastor em Mossoró (RN). Segundo auditores fiscais do trabalho, ela chegou ao local ainda adolescente, com 16 anos, e sofreu abuso e assédio sexual do empregador. A fiscalização constatou que ela era responsável pelos serviços domésticos e recebia em troca moradia, comida, roupa e alguns presentes.
"Em razão da grande repercussão do resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano no final de 2020 em Patos de Minas, o número de denúncias aumentou", afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae).
Operação inédita composta só por mulheres resgata três em MG
Três pessoas foram resgatadas da escravidão em um sítio de criação de gado em Bom Jardim de Minas (MG) em uma operação inédita da qual participaram apenas servidoras públicas. A ação, que terminou na última sexta (3), foi uma alusão ao Dia Internacional das Mulheres.
Por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, foram oito auditoras fiscais, duas agentes administrativas e uma motorista. Pela Polícia Federal, uma delegada e nove agentes. Também teve a participação de uma procuradora do Ministério Público do Trabalho e uma defensora pública da Defensoria Pública da União. Ao todo, 23 mulheres.
"Sempre contamos com mulheres coordenando as equipes, mas desta vez todas as servidoras de todas as instituições eram mulheres. Esperemos que seja a primeira de muitas ações semelhantes", afirma a auditora fiscal do trabalho Andréia Donin, que coordenou a ação. "Já demonstramos que somos capazes de fazer o mesmo trabalho que os homens em qualquer área, da inspeção à segurança."
Para Gislene Stacholski, que também participou da ação, ainda é necessário que eventos como esse ocorram a fim de conscientizar sobre a igualdade. "E, principalmente, para empoderar o trabalho de milhões de mulheres que não têm voz nas suas profissões e se sentem inferiorizadas e oprimidas em seu ambiente de trabalho", diz.
O sistema público de fiscalização de denúncias de trabalho escravo foi implementado majoritariamente por mulheres a partir de maio de 1995, quando o Brasil reconheceu diante das Nações Unidas a persistência desse crime.
Baseado em grupos especiais de fiscalização móvel, ele foi estruturado pela auditora fiscal Ruth Vilela, que coordenou a Secretaria de Inspeção do Trabalho. E, nos primeiros anos, auditoras como Claudia Marcia Brito, Marinalva Dantas, Valderez Rodrigues e Virna Damasceno chefiaram esses grupos em um momento em que eram comuns ações que se deparavam com violência, ameaças de morte, cadáveres de trabalhadores que tentavam fugir. Juntas, libertaram milhares de pessoas.
Na ação de Minas Gerais, dois dos resgatados eram irmãos e trabalhavam no sítio Serra Verde desde 2015. O terceiro tinha 74 anos e estava há 15 anos. "Impressionou a condição de miserabilidade a que estavam expostos", afirmou Andréia Donin.
Número de escravizadas é subdimensionado por conta da exploração sexual
De acordo com o estudo "Trabalho escravo e gênero: quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil?", produzido pela Repórter Brasil, com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), essa condição de minoria contribuiu para que elas permanecessem invisíveis.
O resultado disso é que as especificidades decorrentes da questão de gênero se mantêm há décadas obscurecidas e, até mesmo, desconsideradas por políticas dedicadas à erradicação do trabalho escravo no Brasil, reforçando desigualdades. Nas frentes de trabalho no campo, não raro a atividade doméstica não é reconhecida como trabalho, por exemplo.
O estudo também aponta que essa invisibilidade tem consequências graves como a subnotificação nos dados oficiais sobre mulheres escravizadas, o que, por sua vez, impede a elaboração de políticas públicas que considerem a questão de gênero. Problema que toca especialmente as mulheres exploradas em atividades sexuais.
Há casos em que acabaram categorizadas como "dançarinas" ou "garçonetes", seja por desejo das próprias vítimas com medo de serem identificadas como profissionais do sexo, seja porque as autoridades utilizam outras ocupações para que o vínculo trabalhista possa ser estabelecido e as indenizações e direitos venham a ser pagos.
Trabalho escravo hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.