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Lula completa 100 dias disputando noticiário com o fantasma de Bolsonaro
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Nos primeiros 100 dias de Lula, o jornalismo voltou a lidar com um presidente da República que não cria factoides diariamente para sequestrar o debate público, não tem "cercadinho" de fãs na porta do Palácio do Alvorada e não tem como método atacar profissionais de imprensa mulheres. Mas retornar à normalidade na cobertura do governo federal não é uma tarefa fácil, pois durante quatro anos nos acostumamos a acompanhar Bolsonaro. E ele continuará assombrando.
Independentemente do adjetivo que se queira dar ao nosso ex (golpista, corrupto, genocida...), não é possível ignorar que sua comunicação conseguiu mantê-lo, ininterruptamente, como um dos principais assuntos do país, da posse no primeiro dia de 2019 até o 30 de outubro do ano passado - quando submergiu diante da derrota no segundo turno.
As estratégias de Carluxo e do Gabinete do Ódio criaram polêmicas vazias com o objetivo de garantir o pai nos telejornais, estar onipresentes nas redes sociais do campo democrático e deixar os seguidores fiéis constantemente excitados - e, dessa forma, prontos para defender o "mito". Ou simplesmente para criar uma sempre útil cortina de fumaça - quando o Brasil batia um recorde de mortes pela covid-19 ou quando uma nova denúncia de corrupção surgia, ele falava alguma bobagem violenta que dispersava o foco no que era relevante de fato.
Relatar o barulho de Jair era mais fácil do que cobrir a implementação correta ou não de políticas públicas.
Por volta dos seus 100 dias, Jair Bolsonaro mentia nos Estados Unidos que os comunistas estiveram próximos de conquistar o Brasil, reescrevia os livros de História dizendo que o país nunca tinha passado por uma ditadura militar, divulgava vídeos de golden shower no Carnaval e afirmava no Museu do Holocausto, para espanto dos israelenses, que o nazismo é de esquerda.
O ex-presidente foi a maior ameaça ao exercício da liberdade de imprensa no país durante seu mandato, de acordo com os Relatórios da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, elaborados pela Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas). De 2019 a 2022, ele realizou 570 ataques a veículos de comunicação e aos profissionais da área, numa média de 142,5 agressões por ano. Um ataque a cada dois dias e meio.
Isso quer dizer que Lula é um santo? Longe disso. Só para citar um caso, o pacote "foder o Moro" (desejo que ele tinha quando estava preso e externou durante entrevista) e "armação do Moro" (quando insinuou que a operação da Polícia Federal para desbaratar ameaças do PCC a autoridades era mentira) é suficiente para mostrar que o presidente, por vezes, fala tanto que acaba dando bom dia para cavalo.
Mas os seus 100 primeiros dias não foram marcados pela tentativa de sequestrar a pauta com factoides que não tinham importância alguma para o país, como ocorreu com Bolsonaro. Pelo contrário, o petista pressionou seus ministros a divulgarem ações que anulavam retrocessos civilizatórios perpetrados por Jair. Isso é mostrar serviço e não ocupar o espaço pela falta do que mostrar.
Este início de governo também deixou claro que o governo Lula aprendeu com lições do antecessor na comunicação. Ele não conta com um porta-voz, como em mandatos anteriores, preferindo dar entrevistas exclusivas e coletivas com frequência ou deixar que seus ministros passem recados. Deve ainda falar mais diretamente com o público, como fazia Jair, mas sem esquecer a imprensa.
Também já percebeu que o peso do governo pode ser usado a seu favor nas redes sociais, onde o bolsonarismo nada de braçada. Pesquisa Quaest apontou que a divulgação da nova regra fiscal ganhou do retorno de Jair Bolsonaro dos Estados Unidos em menções nas redes sociais no dia 30 de março. Claramente a data foi escolhida a dedo pela área política, irritando o adversário derrotado nas eleições.
A questão é que Bolsonaro não saiu do noticiário e das redes sociais, pelo contrário. A diferença é que, se antes, ele aparecia na editoria de política, agora divide espaço com as de assuntos policiais. E vai aparecer ainda mais à medida que mais esqueletos de sua gestão forem descobertos.
A tentativa de golpe bolsonarista de 8 de janeiro, o seu autoexílio nos Estados Unidos, o escândalo das joias milionárias que tentou surrupiar, a revelação de seus gastos bisonhos no cartão corporativo, os processos do TSE que podem levar à sua inelegibilidade, tudo isso o mantém em evidência nas manchetes de veículos de comunicação - para o bem e para o mal. Pois, para seu rebanho, a superexposição é prova que ele está sendo "injustiçado".
Conviver com esse fantasma, que agora está de volta ao Brasil, é um desafio para Lula. Ele foi aconselhado a evitar a falar do senador Sergio Moro e de Bolsonaro, deixando as críticas para seus assessores. Mas isso não basta. Vai precisar investir mais na comunicação porque a guerra digital eleitoral recomeça em 2024, com a disputa das prefeituras. Se quiser evitar que a extrema direita volte em 2026, terá que vencer essa batalha.
Em meio a tudo isso, cabe um pouco de reflexão a nós, que cobrimos o poder. Jornalismo serve, essencialmente, para fiscalizar e monitorar. E há uma ansiedade pela aprovação de medidas econômicas. Mas medir este e os próximos governos pelo ritmo alucinado de informações despejadas por Jair é um erro. Até porque grande parte do que ele fazia era vento, forma sem conteúdo.