Leonardo Sakamoto

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Opinião

Assinada por Lula, obra corta terra de povo indígena massacrado na ditadura

Às vésperas de participar da Cúpula da Amazônia, o presidente Lula assinou, nesta sexta (4), a ordem de serviço para as obras do linhão de transmissão que deve conectar Roraima ao sistema elétrico nacional. A repercussão foi toda sobre a (justa) necessidade de garantir energia ao estado, que depende de caras usinas termelétricas. Mas, seguindo a tradição nacional, pouco se falou dos impactos sobre os indígenas que estão no caminho.

Neste caso, o povo kinja, do território Waimiri Atroari, com quem o Brasil tem uma dívida impagável por conta de um genocídio cometido durante a ditadura.

Além de ouvir as comunidades adequadamente, como exige a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o governo federal precisa ter cuidado redobrado. Pois não é só acordar o traçado do linhão e indenizar os indígenas, mas garantir que os erros do passado não sejam novamente cometidos no momento de instalação da obra.

Dos 715 km do linhão de Tucuruí ligando Manaus a Boa Vista, 122 km devem passar por essa terra indígena, que fica entre o Amazonas e Roraima, erguendo 250 torres ao longo da BR-174.

A obra já era fortemente defendida por Jair Bolsonaro em seu governo, que encaminhou a obra e sempre citava o espaço entre as duas capitais como exemplo de preservação. O que é uma mentira histórica, pois não é possível chamar de exemplo um local em que milhares de indígenas foram mortos em nome da implementação de grandes projetos de engenharia.

Relatos colhidos de sobreviventes em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), por exemplo, contam que helicópteros sobrevoaram aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem. Depois disso, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolas violentas praticadas por homens brancos fardados contra adultos e crianças sobreviventes. Tratores passaram, na sequência, destruindo tudo.

O MPF cobrou que o Estado brasileiro assumisse sua responsabilidade, adotasse medidas de reparação e de indenização pelas violências cometidas contra a etnia entre os anos 1970 e 1980.

"Um dos depoimentos mais fortes apresentados à Justiça na audiência foi prestado por um que sobreviveu, quando adolescente, a um ataque aéreo e terrestre contra uma aldeia localizada nas proximidades do traçado da rodovia BR-174. Ele relatou que os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratava. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiam mais andar e ficaram todos 'muito doentes', em decorrência de veneno jogado do alto. Ele contou ainda que, depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e dos demais indígenas presentes, testemunhou homens brancos entrarem na aldeia por terra, armados com facas e revólveres", afirmou o MPF.

Além dos ataques, as obras para a abertura da rodovia BR-174, ligando Manaus a Boa Vista e à fronteira entre Pacaraima e Santa Elena do Uairén, na Venezuela, levaram doenças para a população. Muitos morreram sem apoio e a rodovia se tornou vetor de ocupação do Estado de Roraima e orgulho da ditadura.

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O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3 mil, nos anos 1970, para 332 indígenas nos 1980. Se isso não é tentativa de exterminar um povo, nada mais é.

Com a redemocratização, o número subiu. No ano passado, eram cerca de 2,5 mil kinjas vivendo em 74 aldeias.

Marco Temporal facilita obras em terras indígenas

Em 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou por 283 votos a 155, o PL 490/2007 - projeto que não se resume ao marco temporal para a demarcação de terras, mas coloca em risco a vida e a existência de povos indígenas. A proposta está agora com o Senado Federal.

A parte mais conhecida do que vem sendo chamado de PL do Genocídio, menina dos olhos da bancada ruralista, é a que afirma que somente terras ocupadas por indígenas na promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988, podem ser reivindicadas para a demarcação. Uma brincadeira de mau gosto, uma vez que muitos povos estavam expulsos de seus locais de origem naquele momento.

Mas se o PL parasse por aí seria apenas péssimo, mas ele vai muito mais fundo em medidas para desagregar comunidades e colocar vidas em risco.

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O projeto permite contato com indígenas isolados, podem levar a danos irreversíveis; proíbe a ampliação de terras já demarcadas, evitando corrigir erros ou sacanagens do passado cometidos por pressão do poder econômico; prevê a retomada de territórios indígenas caso ocorra "alteração dos traços culturais da comunidade" - sim é o que você leu; prevê dispensa de consulta prévia dos indígenas para instalar bases militares, implementar rodovias, ferrovias e hidrovias, construir hidrelétricas.

E facilita que o poder público instale rodovias, ferrovias, redes de comunicação e, claro, linhas de transmissão de energia elétrica em terras indígenas mesmo sem a concordância dos povos que vivem lá.

O governo Lula, é importante ressaltar, é contra o PL 490/2007, tanto que a maior parte de sua base na Câmara se opôs. Mas, vale lembrar, deputados de partidos aliados votaram a favor e agremiações que estão prestes a ganhar ministérios também.

O povo de Roraima tem direito à energia elétrica, mas os povos indígenas também têm direito à dignidade. Essa equação terá que ser resolvida pelo governo federal.

A gestão da presidente Dilma Rousseff deu de ombros para os alertas dos indígenas de que a usina hidrelétrica de Belo Monte causaria danos aos povos e ao meio ambiente na bacia do rio Xingu. Lula não tem o direito de repetir a história.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL