Leonardo Sakamoto

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Opinião

Fronteira entre a burrice e a autoconfiança é muito tênue no Bolsoverso

"Senhores, todos vão se foder. Eu quero deixar bem claro isso. Eu quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder." A declaração de caráter profético foi feita pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres, em uma reunião de caráter golpista em 5 de julho de 2022.

O objetivo era cobrar engajamento para a difusão de mentiras sobre o sistema eleitoral e, ao mesmo tempo, buscar formas de utilizar a estrutura do Estado brasileiro a fim de se manterem no poder.

A reunião foi gravada e o vídeo encontrado na casa do ex-faz-tudo de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Sim, uma reunião golpista foi gravada. O que mostra que a fronteira entre a burrice e a autoconfiança é muito tênue no Bolsoverso, o universo paralelo da extrema direita. Ou tinha alguém, desde sempre, registrando tudo como garantia.

A profecia se cumpriu. Torres veio a ser preso após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, quando já estava à frente da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Ficou quatro meses atrás das grades. A conivência e a falta de organização da Polícia Militar do DF diante dos golpistas foi fundamental para a destruição da Praça dos Três Poderes. E enquanto o pau comia aqui, ele estava convenientemente de "férias" nos Estados Unidos.

Os melhores momentos do encontro - que juntou, além de Torres, o então presidente Jair Bolsonaro e os generais Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Braga Netto (ex da Casa Civil), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Mário Fernandes (número 2 da Secretaria-Geral da Presidência) - estão descritos na decisão do ministro Alexandre de Moraes. Ele autorizou, nesta sexta (8), operação da Polícia Federal que investiga uma organização criminosa que tentou um golpe de Estado.

"Nós vamos esperar chegar 23, 24, para se foder?", questionou Bolsonaro, deixando claro que não precisaria "botar tropa na rua, tacar fogo, metralhar" se as mentiras sobre a Justiça Eleitoral fossem devidamente espalhadas.

"Daqui pra frente quero que todo ministro fale o que eu vou falar aqui, e vou mostrar. Se o ministro não quiser falar, ele vai vim falar para mim porque que ele não quer falar. Se apresentar onde eu estou errado, eu topo. Agora, se não tiver argumento pra me demover do que eu vou mostrar, não vou querer papo com esse ministro. Tá no lugar errado", disse. Jair ainda avisou que faria a fatídica reunião com os embaixadores, na qual atacou o sistema eleitoral e por conta da qual foi tornado inelegível no ano seguinte.

Torres fez um discurso forte na reunião golpista com os generais.

"Tem muitos aqui que eu não sei nem se tem estrutura para ouvir o que a gente tá falando aqui, com todo o respeito a todos. Mas eu queria começar por uma frase que o presidente colocou aqui, que eu acho muito verdadeira. O exemplo da Bolívia é o grande exemplo para todos nós. Senhores, todos vão se foder!", avisou.

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Por que Bolívia? Durante anos, o fantasma do destino da ex-presidente do país vizinho, Jeanine Añes, condenada por um golpe de Estado em 2019, rondou os pesadelos de Jair.

Em junho de 2021, quando ela já estava presa, ele tratou do assunto com seus seguidores: "O que aconteceu na Bolívia? Voltou a turma do Evo Morales e, mais ainda, a presidente que estava lá no mandato tampão [Jeanine Añez] está presa, acusada de atos antidemocráticos. Estão sentindo alguma semelhança com o Brasil?", disse.

Em abril de 2022, a ex-presidente da Bolívia já havia aparecido em um discurso de Jair no Palácio do Planalto: "Tenham certeza eu jamais serei uma Jeanine, jamais, porque primeiro eu acredito em Deus e depois acredito em cada um de vocês que estão aqui. A nossa liberdade não tem preço, digo mais, como sempre tenho dito: ela é mais importante que a nossa própria vida, porque um homem, uma mulher sem liberdade não tem vida".

Percebam que não era a liberdade dos brasileiros que estava em jogo para ele, mas a dele. E pediu ajuda aos seus aliados presentes: "acredito em cada um de vocês que estão aqui".

E, em junho de 2022, durante visita a Orlando, nos Estados Unidos Bolsonaro se compranou novamente à Jeanine Añes. Ela estava presa naquele momento e, ironicamente, sendo julgada junto com ex-chefes militares. "A turma dela perdeu, voltou a turma do Evo Morales. O que aconteceu um ano atrás? Ela foi presa preventivamente. E agora foi confirmado dez anos de cadeia para ela", disse.

E foi além: "Qual a acusação? Atos antidemocráticos. Alguém faz alguma correlação com Alexandre de Moraes e os inquéritos por atos antidemocráticos? Ou seja, é uma ameaça para mim quando deixar o governo?"

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Bolsonaro não tinha planos para deixar o poder mesmo se perdesse, pois sabia que a única coisa que adiava seu encontro com a Justiça por crimes que cometeu (700 mil mortes na pandemia, denúncias de corrupção em pastas como Saúde e Educação, desvios em cartões corporativos da Presidência da República, subtração de joias pertencentes ao poder público...) era a imunidade do cargo.

Para permanecer no poder, dobrou a aposta, foi para o tudo ou nada e tentou junto com seus assessores e aliados levar a cabo um golpe de Estado. Quase deu certo, mas não deu. Ele culpa uma conspiração contra ele, mas o que essa reunião mostra é que quem conspirou contra si mesmo foi ele.

"Nós vamos esperar chegar 23, 24, para se foder?", questionou Bolsonaro. Sim, ao que tudo indica, 2024 é o ano.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL