Bolsonaro deveria agradecer que só o seu passaporte ficou preso na PF
Jair Bolsonaro deveria se dar por satisfeito que apenas o seu passaporte está nas mãos da Polícia Federal por ordem do ministro Alexandre de Moraes do STF. Pois não seria surpreendente se fosse ele, e não o documento, quem estivesse bem guardado em uma sala da instituição.
Apesar disso, sua defesa solicitou a Moraes a devolução do passaporte sob a justificativa de que ele tem compromissos políticos em outros países, como os Estados Unidos, onde espera se encontrar com Donald Trump em um evento conservador na semana que vem, mas também em Israel e no Bahrein - um local com recordações de ouro para o ex-presidente.
Seus advogados alegam que Jair sempre colaborou com as instituições — instituições que ele acusa de estarem servindo ao interesse de Lula ao investigá-lo. Também não colaborou em nada o "passeio de lancha" que fez com os filhos em Angra do Reis coincidentemente na hora em que uma operação que investiga espionagem em seu governo procurava seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro.
A defesa também diz que não há indícios de risco de fuga, ignorando que ele, ainda presidente da República, se evadiu do país em 30 de dezembro de 2022. Naquele momento, naufragavam o planos de golpe com ele sentado no Palácio do Planalto, mas se desenhava outro, com Lula já no comando, o que culminou nos ataques de 8 de janeiro.
"A retenção do passaporte é um mínimo. Há quem defenda que seria razoável uma prisão preventiva do ex-presidente neste momento porque há uma estrutura criada por ele dentro e fora do Estado brasileiro que persiste cometendo crimes", afirma a constitucionalista Eloísa Machado, professora e pesquisadora da FGV Direito-SP.
Ela ressalta que uma medida cautelar em uma investigação em curso é justificada pelo grande poder e acesso que Bolsonaro ainda tem a essas estruturas.
No pedido para apreensão do passaporte, a Polícia Federal sustentou: "Frustrada a consumação do golpe de Estado por circunstâncias alheias à vontade dos agentes, identificou-se que diversos investigados passaram a sair do país, sob as mais variadas justificativas (férias eu descanso), como no caso do ex-presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro da Justiça Anderson Torres".
No que foi atendida por Moraes, que explicou em seu despacho:
"O desenrolar dos fatos já demonstrou a possibilidade de tentativa de evasão dos investigados, intento que pode ser reforçado a partir da ciência do aprofundamento das investigações que vêm sendo realizadas, impondo-se a decretação da medida quanto aos investigados referidos, notadamente para resguardar a aplicação da lei penal".
Em suma: a capivara da galera é de respeito, portanto, melhor prevenir do que remediar.
É difícil imaginar que, diante do risco real de prisão, Bolsonaro - que se escafedeu em dezembro de 2022 por muito menos - não busque refúgio em outro lugar. Mas, com a experiência dos bolsonaristas que cometeram crimes e fugiram para o EUA e, até hoje, não foram deportados, é mais difícil ainda imaginar que o ministro Alexandre de Moraes abra essa porta e atenda o pedido.
A ação de Moraes também nos poupa de um plágio novelístico terrível.
A cena do ex-presidente decolando rumo ao exterior soaria como a banana dada ao país pelo personagem mau-caráter Marco Aurélio, vivido pelo ator Reginaldo Faria, na icônica novela Vale Tudo, transmitida pela Rede Globo entre 1988 e 1989, e escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. O empresário fugiu do país em um avião no fim da novela.
Tanto Jair quanto Marco Aurélio presentearam os brasileiros com declarações amorais. E se o personagem fictício que parece real era acusado de montar esquemas para desviar recursos em benefício próprio, o mesmo pode ser dito do personagem real que parece fictício e as denúncias de desvios de recursos públicos e de lavagem de dinheiro através da compra de imóveis usando dinheiro vivo, das joias pertencentes ao país, do uso ilegal do cartão corporativo da Presidência.
Aliás, a Era Bolsonaro foi uma grande Vale Tudo. O fato da atriz Regina Duarte, que viveu Raquel Accioli, mãe da gloriosa Maria de Fátima, estar na mesma novela política de Marco Aurélio, digo, Jair, ao ter assumido a Secretaria Nacional de Cultura, ajuda deixar mais tênue o limiar entre ficção e realidade. Além disso, a esposa de Reginaldo Faria era interpretada por ninguém menos que Cássia Kiss, que hoje no final de 2022 se tornou habitué de manifestações golpistas e ícone da extrema direita religiosa. E ainda há quem diga que o ministro da Economia, Paulo Guedes, pego em declarações que questionavam seu respeito pelos mais pobres, se confundia com a vilã Odete Roitman - da genial Beatriz Segall.
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Quero receberA novela veio a público pela primeira vez quando o país vivia um momento turbulento de sua história, em meio a uma Assembleia Constituinte que tentava refundar a democracia após 21 anos de uma ditadura de rapina dos verde-olivas e seus apoiadores parasitas da iniciativa privada.
Durante o mandato de Bolsonaro, as instituições que levaram três décadas para serem construídas foram se esfacelando em praça pública, atacadas pelo próprio governo. Instrumentos de controle como setores da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Procuradoria-Geral da República, do Coaf, da Receita Federal, da Funai, do Ibama, entre outros, foram se dobrando às necessidades presidenciais. Sim, Bolsonaro ataca Lula de algo que conhece bem.
"Vale a pena ser honesto no Brasil?" era a grande pergunta da novela. A reflexão sobre a atualidade dessa questão deve ser feita à luz das tantas denúncias de que o presidente usou a coisa pública para o seu interesse privado, cultivando mortos e famintos, e, ainda assim, teve 49,1% dos votos válidos.
"Você precisa fazer um personagem fascista para que as pessoas entendam o que significa o fascismo", disse Reginaldo Faria, em uma entrevista ao jornal Extra, em 2015. O problema é que o Brasil produziu um presidente que dobrou o país às suas necessidades particulares e às de sua família, indo mais fundo do que os ditadores entre 1964 e 1985. E foram muitos os brasileiros que se reconhecem nele, sonhando também em dar uma banana ao seu país.