Leonardo Sakamoto

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Opinião

Aos 60 anos do golpe, Brasil merece governo que não tenha medo de militares

Sabe por que é importante relembrar os 60 anos do golpe de 1964? Porque ele continua vivo nos militares que insistem em melar eleições, no discurso cínico de que as Forças Armadas são o poder moderador e na corrupção de fardas limpas com braço forte e mão leve. Mas também segue vivo na tortura pelas mãos de policiais nas periferias, herdeiros dos métodos e técnicas desenvolvidos na repressão.

Com medo de melindrar os militares em um momento em que generais são alvos de investigações sobre a conspiração bolsonarista, o governo Lula decidiu não aproveitar o 31 de março para fomentar um debate público. E, com isso, o Brasil perde uma chance de discutir o que aconteceu há 60 anos, mas também há um ano, deixando a porta aberta para que novas intentonas se repitam.

O golpe militar de 1964 ainda é purulenta ferida exposta. Nunca curamos o que foi deixado por 21 anos de ditadura. Tapamos com um curativo mal feito, ao qual chamamos de transição lenta, gradual e segura. Cobrimos com anistia. Com Deixa Prá Lá. Com governabilidade.

Mas essas feridas continuam fedendo, apesar dos esforços estéticos. Não apenas pelo apoio e a anuência de membros das Forças Armadas à tentativa de golpe bolsonarista, mas toda vez que o Estado mata - não como um infeliz efeito colateral da proteção da população ou de si mesmo, mas como execução de uma política de limpeza e contenção social.

Temos lidado com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não entendermos, refletirmos, discutirmos e resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia, com parte do Estado aterrorizando e reprimindo parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

Sim, a ditadura é revivida não apenas quando inconsequentes - que usam sua liberdade de expressão contra a liberdade de expressão alheia - vão às ruas executar um golpe, ou quando um governo tentar calar comunicadores e jornalistas. Mas também quando alguém negro pobre é torturado e morto pelas mãos do poder público ou de pessoas treinadas por ele com táticas refinadas na ditadura a fim de garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (no campo).

Caso 1% da energia gasta para cobrar uma autocrítica pública do PT sobre os escândalos de corrupção tivesse sido empregada em uma demanda semelhante aos militares sobre o golpe de 1964, talvez não tivéssemos o engajamento de parte de membros das Forças Armadas para manter Jair Bolsonaro no poder.

Os militares não aproveitaram a chance dada pela Comissão da Verdade para uma autocrítica pública, o que ajudaria a refundar a relação com os civis em melhores bases. Pelo contrário, enxergaram nela uma afronta à instituição e declararam guerra ao governo Dilma Rousseff e, por conseguinte, a Lula. E parte da sociedade e da imprensa, veja só, ainda criticou a comissão que queria esclarecimentos sobre o que aconteceu com os mortos e desaparecidos políticos da ditadura.

O plano golpista de Bolsonaro contou com generais como Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Estevam Theophilo, com o almirante Garnier, e um rosário de oficiais. Tratar isso como um grupelho assanhado é jogar a realidade para baixo do tapete. O golpismo é entranhado nas Forças Armadas porque nunca foi devidamente dissuadido.

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Prova disso é que, no ano passado, os comandantes das Forças Armadas deram uma passada de pano nos movimentos golpistas que acampavam em torno de quartéis e ainda trancavam rodovias estaduais através de uma nota no dia 11 de novembro de 2022. Poderiam ter ficado em silêncio, cumprindo seus afazeres constitucionais, mas preferiram protagonizar mais um vexame. Os generais Freire Gomes e o brigadeiro Batista Júnior, que agora fazem o favor de revelar etapas do golpismo de Jair, estavam entre os signatários.

Mais porque o Ministério da Defesa havia se humilhado um dia antes com uma nota pública baseada em uma falácia descrita no mais básico manual de lógica. Após o seu relatório sobre a credibilidade do sistema eletrônico de votação (é um absurdo que elas tenham se dedicado a isso, aliás) não apontar uma única fraude, a nota afirmou que não é porque fraudes não tinham sido constatadas que elas não ocorreram de fato. Sim, bizarro.

A despeito de militares democratas que tenham feito resistência, há uma dúvida que deveria afligir mais a jovem democracia brasileira: se a oportunidade que estivesse diante da cúpula das Forças Armadas não fosse a conspiração tosca de Jair, mas algo mais bem costurado, com suporte internacional (imagine se Donald Trump tivesse sido reeleito) e de setores importantes aqui dentro, elas entrariam de cabeça no golpe?

Nos seus quatro anos de governo, Jair Bolsonaro se associou a militares com cargos, vantagens na Reforma da Previdência, licitações de produtos de luxo para o oficialato. Cobrou, em troca, sujeição para degradar a democracia e cumplicidade enquanto garantia o vale-tudo ambiental na Amazônia.

Sob o capitão, militares se beneficiaram de Viagra e próteses penianas, camarão e filé mignon, pensões especiais para filhas não casadas e acesso a hospitais especiais. Coronéis articularam bizarras reuniões em que se negociou com reverendos, servidores públicos e indicados de políticos, sobrepreço e propinas para a compra de doses de vacina contra a Covid-19 enquanto pessoas morriam por falta de imunizante.

Deveríamos transformar o dia do golpe militar de 1964 em feriado nacional. Talvez assim possamos garantir que esse dia nunca seja encarado por nós e, principalmente, pelas gerações que virão como um grande Primeiro de Abril, como se o golpe de 1964 nunca tivesse existido.

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Que o Supremo Tribunal Federal reconsidere e afirme que crimes contra a humanidade, como a tortura, não podem ser anistiados, nunca. Que a história das mortes sob responsabilidade da ditadura seja conhecida e contada nas escolas até entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada.

Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL