Leonardo Sakamoto

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Opinião

Temendo eleição, governo vai largar criança estuprada e engolir medievais?

Consolidou-se em setores do PT e de outros partidos progressistas um dogma de que falar de aborto é perder a eleição. Como a pauta não tem o apoio majoritário da população, muitos ficam quietos deixando para o Supremo Tribunal Federal resolver. Como agora, diante do PL do Estuprador ou PL da Gravidez Infantil, em que a falta de ação de muita gente com cargo público nos lembra que a História, em algum momento, cobrará o seu preço.

Ressalte-se que "ação" não é postar indignação nas redes sociais. Para isso, já temos muito ativista de sofá. O que se espera é articulação no Congresso, sem receio de melindrar as facções medievais que controlam votos. Até porque não se trata aqui de criar mais situações em que o aborto é previsto, mas defender de retrocesso aquelas em que ele sempre foi permitido.

Um resumo para você que estava preso em uma caverna vendo apenas vultos nos últimos dias: facções medievais na Câmara dos Deputados uniram-se a mercadores de emendas e à turma do "quanto pior, melhor" para passar pautas ultraconservadoras, constrangendo o governo e batendo no STF. Entre elas, a que impede o aborto em caso de estupro (garantido por lei) após a 22ª semana.

Crianças e adolescentes de zero a 13 anos são 61,4% das vítimas de estupro no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Se contarmos apenas quem tem até quatro anos, o número é de 10,4%. Por desconhecerem o seu corpo ou por terem medo de ameaças em casa (68,3% dos estupros de crianças ocorre em casa) por parte de pais, tios, irmãos e padrastos estupradores (64,4% dos algozes são da própria família), elas não procuram o médico até a 22ª semana. E, quando procuram, não raro encontram doutores que se negam a fazer a interrupção ou promotores de juízes que discordam da lei.

O tema sempre foi complicado para os progressistas na política, porque a maioria da população é contrária à interrupção da gravidez. Em ano eleitoral, fica pior ainda - e as facções medievais no Congresso sabem disso e se lambuzam. Nas eleições presidenciais de 2014, por exemplo, nem parecia que estávamos elegendo um presidente, mas sim um Torquemada, dada a centralidade da temática.

Mesmo com tragédias, como a de Jandira dos Santos (que por não conseguir fazer um aborto legal em um hospital público procurou uma clínica particular tosca, morreu durante o procedimento e teve seu corpo carbonizado para tentar encobrir as provas no Rio de Janeiro), candidatos se esquivavam de um posição em defesa da vida das mulheres.

Agora, não é diferente. Muitos progressistas temem qualquer pauta que não tenha o apoio majoritário. Preferem o silêncio ao invés de fazer as perguntas certas à população. No caso em questão, não é se as pessoas são contra ou a favor de aborto - até porque, vamos ser sinceros, ninguém é favor do aborto, nem a pessoa que o realiza. Ele é uma saída dura para evitar a destruição da própria vida em muitas dimensões - física, psicológica e social.

As perguntas certas são: a) você é favor de que crianças estupradas sejam obrigadas a manterem a gravidez do estuprador? b) Você é a favor de que mulheres estupradas que realizem um aborto legal sejam enviadas para a cadeia pelo dobro de tempo que o próprio estuprador? c) Você seria a favor de que sua mãe, irmã, filha ou esposa, caso sejam estupradas, sejam obrigadas a carregarem a gravidez e que, se tentarem realizar um aborto já garantido pela lei, sejam presas por 20 anos por homicídio?

A resposta seria diferente de "você é a favor do direito ao aborto?", como fazem muitos institutos de pesquisa.

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Não é uma tarefa fácil. Mas uma coisa é termos uma sociedade conservadora, outra é ela ser medieval, e o povo brasileiro ainda não é Gilead - apesar de seus políticos já estarem vivendo no país fictício da série "O Conto de Aia", em que parte do governo dos Estados Unidos se tornou fundamentalista cristão, doido e violento.

Da mesma forma que parte do país já soube explorar junto à opinião pública conceitos como "o Congresso está tentando privatizar o acesso às praias" ou "governo Temer dificultou a libertação de escravizados", é possível explicar à população o impacto das movimentações que estão rolando neste momento na Câmara. Tal qual vem fazendo a sociedade civil, ao tratar o tema com a crueza que ele merece, chamando a medida de PL da Gravidez Infantil ou PL do Estuprador e indo às ruas.

Entende-se que o governo não queira mais acumular derrotas, que podem torná-lo ainda mais refém de um Congresso com uma grande quantidade de parlamentares sem escrúpulos. E que o PT ainda está traumatizado com o impacto eleitoral negativo de campanhas que envolveram o combate ao assédio e à violência de gênero em 2018 e teme problemas na disputa a prefeituras.

O pessoal do "quanto pior, melhor" no Congresso sabe desse medo e quer o governo Lula emparedado entre não fazer nada (e levar sola de quem o apoiou em 2022) e fazer algo (e ser acusado de abortista junto às comunidades evangélicas). Isso sem contar o medo do governo de que fazer algo ou não fazer nada pode interferir na eleição interna do Congresso para a Presidência da Câmara, com Arthur Lira angariando apoio dos ultraconservadores.

A questão é que permitir, sem luta, que esse retrocesso avance é a porta de entrada para outras sacanagens. O governo e o país estão sendo testados pelas bancadas do retrocesso sob o risco de que se deixar passar um boi, vai tomar uma boiada.

Mas este tema é um daqueles que separam os democratas de outro tipo de golpista, que também tenta manter uma parcela da população sob o seu inquestionável controle, atropelando os preceitos mais fundamentais da dignidade humana no meio do caminho. Por isso, mesmo com a estratégia oposicionista, não fazer nada é estar ao lado do PL do Estuprador e da Gravidez Infantil.

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Defender o direito ao aborto legal não é defender que toda gestação deva ser interrompida. E sim que as mulheres (e ainda, mais crianças) tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se fizerem essa opção. Porque ela, na maioria das vezes, vai ocorrer, quer esta sociedade de controle masculino queira ou não. E mulheres e crianças vão morrer no meio do caminho.

Lembro do caso de uma menina de dez anos que foi estuprada pelo padrasto no Paraguai e teve que levar a gravidez à cabo, em 2015, porque a interrupção da gravidez só era permitida em caso de risco de vida para a mãe. Pensava: pobres vizinhos.

Com o tempo, pipocaram mais casos em que o poder público pressionou para que crianças estupradas fossem obrigadas a terminar a gestação, como na ação de representantes do governo Bolsonaro junto a uma menina de dez anos no Espírito Santo e da pressão feita por uma promotora e uma juíza a outra menina de dez anos em Santa Catarina. Sob protestos de fundamentalistas, elas conseguiram interromper a gravidez. O caso na região Sul envolveu uma gravidez de 22 semanas. Mal sabíamos que os paraguaios olhavam para nós pensando: não sintam pena, nós somos vocês amanhã.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL