Leonardo Sakamoto

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Opinião

Proposta de ala do governo contra seguro-desemprego mata reeleição de Lula

Depois que Lula nos disse, em entrevista ao UOL, que não vai desvincular do salário mínimo o pagamento de pensões, aposentadorias e benefícios permanentes (como aquele concedido aos idosos miseráveis), eis que membros da sua equipe estudam reduzir o valor pago a benefícios temporários, como o seguro-desemprego.

Ou seja, querem que os trabalhadores desempregados recebam progressivamente menos que os da ativa, com o reajuste do benefício sendo realizado pela inflação, afastando-o dos ganhos reais da política de valorização do salário mínimo.

Até porque, como todos sabemos, os desempregados, como um urso, entram em hibernação, e, por isso, comem menos, ficam menos doentes e não se deslocam. Só despertam quando pinga uma vaga nova de emprego.

Reportagem da Folha de S.Paulo, nesta quinta (4), revela que também estariam na mira dessa ala do governo federal o seguro-defeso (pago a pescadores artesanais), os auxílios por acidentes de trabalho (sim, mesma lógica do seguro-desemprego, trabalhador estrupiado na cama deve comer menos na cabeça desse povo) e, claro, a pièce de résistance: o abono salarial - que chega a 24,9 milhões de trabalhadores.

A principal fonte de recursos do seguro-desemprego é o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador), carregado com cascalho recolhido pelos empregadores via PIS/Pasep. Uma parte da grana é aplicada no BNDES para financiamentos da infraestrutura, da indústria, do comércio e do agronegócio e voltam ao fundo. No final do segundo bimestre deste ano, seu patrimônio era de R$ 512,2 bilhões.

Em maio, foram pagas 2,18 milhões de parcelas do seguro-desemprego, em um valor médio de R$ 1.719,54.

Discute-se que o fundo vem sendo deficitário por conta da política de valorização do salário mínimo, mas pouco se fala que, durante anos, um grande naco do FAT ia para pagar outras despesas do governo via DRU (Desvinculação das Receitas da União) e, agora, bilhões são repassados à Previdência Social. E o fundo não existe para isso, apesar das ideias criativas de servidores públicos e de alas do mercado.

Na prática, para manter as desonerações e os subsídios de setores econômicos com bancada e forte lobby no Congresso e para evitar um debate real sobre a taxação progressiva de renda no país, quem vai pagar o pato é o trabalhador desempregado.

Vale lembrar que o governo deveria ter encaminhado ao Congresso a proposta da segunda etapa da Reforma Tributária. A primeira foi sobre o consumo, a segunda é a respeito da renda. O que incluiria taxação de super-ricos e outras formas de reduzir a desigualdade gritante que faz com que o andar de cima pague relativamente menos que o de baixo.

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Um trecho da reportagem da Folha que traz o pensamento dessa ala do governo é especialmente instigante: "Os técnicos apontam que a medida, além de reduzir as despesas obrigatórias, pode criar um efeito positivo no mercado de trabalho e na produtividade do país. A lógica é que o trabalhador receberá no seguro-desemprego um valor menor que o salário mínimo pago no mercado, e isso pode desencorajá-lo a aguardar o término das parcelas do benefício para voltar a buscar emprego. Nesse cenário, a rotatividade no mercado tenderia a diminuir".

Em outras palavras, o brasileiro sem emprego é, acima de tudo, um encostado, e, fechando a torneira do benefício, ele vai se mexer. Tenho coberto casos de escravidão contemporânea nos últimos 25 anos e esse argumento é usado sistematicamente por fazendeiros que justificam que benefícios sociais tornam trabalhadores vagabundos.

O jornal cita que a equipe econômica tem o diagnóstico de que há cidades turísticas em que trabalhadores pressionam para serem demitidos na baixa temporada para receberem o seguro-desemprego, na expectativa de serem contratados novamente na alta temporada. Então, trago outro dado: há usinas de cana-de-açúcar que deveriam manter o trabalhador contratado o ano inteiro, mas demitem-no por três meses, quando a demanda é menor, contando que ele será mantido pelo seguro-desemprego. Depois, recontratam-no.

A culpa, portanto, não é do valor do benefício, mas de fraudes que deveriam ser combatidas pelo fortalecimento da Inspeção do Trabalho - que, aliás, aguarda Godot na forma de realização de um concurso para a contratação de 900 auditores. É possível melhorar o seguro-desemprego combatendo o conluio, sem destrui-lo.

O mercado e seus porta-vozes deram uma sossegada nesta quarta (3) depois que Lula não abriu a boca para bater no juros, no câmbio, no Banco Central e no seu presidente, Roberto Campos Neto. Até houve festa sobre uma declaração do presidente em defesa da responsabilidade fiscal, sendo que ele havia dito a mesma coisa, há uma semana, em entrevista ao UOL.

O que acalmou de verdade foi que Ministério da Fazenda começou a anunciar medidas para atacar o déficit das contas públicas. Por enquanto, indicou que haverá contingenciamento este ano e cortes no orçamento do ano que vem. Sobre benefícios sociais, trouxe de novo o já anunciado pente fino. Mas isso não basta, o mercado demanda um sacrifício. E, por isso, o balão de ensaio sobre desvincular benefícios sociais temporários.

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É difícil imaginar que Lula topará dar uma cacetada em sua base com essa mudança no seguro-desemprego, imaginando, claro, que ele quer se reeleger ou manter o PT no poder. Tão difícil quanto entender por que o último governo aumentou absurdamente os gastos para tentar se reeleger, furou o teto de gastos uma renca de vezes, fez lambança com precatórios, estropiou os critérios do Bolsa Família, distribuiu dinheiro para taxistas e caminhoneiros, mas mercado pouco estrilou. Pelo contrário, muitos fizeram campanha por ele.

Talvez seja porque seus líderes disseram que empregada doméstica viajando para a Disney era um absurdo e que Bolsa Família tornava as pessoas vagabundas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL