Leonardo Sakamoto

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Opinião

Finados: Brasil, país de memória fraca, segue com 700 mil mortes impunes

O Brasil tem a sétima população mundial, mas foi o segundo em número de óbitos por covid-19, com 700 mil. Essa discrepância não é obra da mãe natureza, mas resultado de uma política negacionista tomada pelo governo Jair Bolsonaro e aliados, que demoraram a comprar vacinas e incentivaram a livre contaminação.

Hoje, Dia de Finados, é bom momento para lembrar aos brasileiros que perderam alguém ou que se importam com a vida que os crimes cometidos contra a saúde pública entre 2020 e 2021 seguem praticamente impunes.

Certamente, os atos do ex-presidente pesaram contra a sua reeleição, mas a resposta política é apenas parte da equação. Se não houver punição firme aos envolvidos, a mesma coisa pode ser repetir na próxima pandemia. E sim, a ciência aponta que haverá outras.

A CPI da Covid, instalada no Senado Federal em 2021, teve 67 sessões, 215 quebras de sigilo, 1.582 requerimentos, terminando com o pedido de indiciamento de 78 pessoas, entre eles o ex-presidente Bolsonaro por "expor" deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa".

Ela pediu o seu indiciamento por charlatanismo, prevaricação, infração de medida sanitária preventiva, emprego irregular de verba pública, epidemia com resultado de morte.

O inquérito contra ele está sob responsabilidade do STF, mas é mais fácil ele ser condenado por surrupiar joias dadas ao Brasil pelos árabes do que ser punido pelo que a CPI apontou.

Enquanto isso, vamos vendo a política tentar reescrever essa história.

O prefeito de São Paulo Ricardo Nunes deu uma cadeirada discursiva no Zé Gotinha e abraçou o pior do bolsonarismo-raiz ao afirmar que era contra a obrigatoriedade da vacina durante esta eleição. Entende-se que, em nome do voto, candidatos comam salgado em boteco duvidoso, beijem filhote de cachorro de rua e deem bom dia para cavalo, mas abraçar uma posição que matou milhares é abrir o alçapão no fundo do poço.

"Tenho muita tranquilidade, depois de toda experiência, e tenho humildade para te falar que hoje sou contra a questão da obrigatoriedade", disse o prefeito ao podcast do bolsonarista Paulo Figueiredo, sobre a pandemia de covid-19. Depois, em outra entrevista, afirmou que, hoje, não teria feito o passaporte da vacina. Por "hoje", leia-se, em uma campanha eleitoral em que ele precisava tirar votos bolsonaristas que estavam com Pablo Marçal.

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Questionado sobre essas declarações, Nunes disse que ele tornou São Paulo a capital mundial da vacina. O que é irônico, pois a Forbes só se referiu à cidade dessa forma na pandemia devido ao sucesso de ações como a obrigatoriedade e o passaporte.

Brasil com um pé no terraplanismo

O Brasil já foi um caso exemplar de vacinação para o mundo, mas vem apresentando queda na taxa de imunização, o que disparou o alerta no Sistema Único de Saúde. Muito por conta da viralização do discurso negacionista, que foi alimentado pelo governo Bolsonaro e por declarações eleitoreiras como essas de Nunes.

Vencemos o coronavírus apesar das ações letais do ex-presidente. Sim, em nossa maior guerra, aquela que deixou mais de 700 mil mortos em nosso território, tivemos o azar de ter como comandante um ex-capitão que se aliou ao nosso pior inimigo.

Bolsonaro não teve pressa alguma para comprar vacinas. Pelo contrário, ignorou durante meses as insistentes ofertas de imunizantes da Pfizer, que poderiam ter chegado ainda em 2020 e salvado a vida de milhares de brasileiros. Chegou a dar um chega-pra-lá no então ministro da Saúde Eduardo Pazuello por declarar que compraria doses da CoronaVac. Como "um manda, o outro obedece", ficou por isso mesmo.

Em um dos lances mais sinistros, o presidente e o ex-ministro Marcelo Queiroga colocaram milhões de crianças em risco no final de 2021. Criando uma falsa guerra pela "liberdade" de não se vacinar, Bolsonaro postergou o quanto pôde o início da imunização a partir dos cinco anos de idade, impondo inúteis consultas públicas, ameaçando a equipe da Anvisa, espalhando desinformação, atrasando a compra de doses. Ele ainda diria que a vacina matava crianças e adolescentes e causava HIV.

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Depois a CPI da Covid descobriu que, enquanto o país clamava por doses de imunizantes, negociatas discutindo propina aconteciam no Ministério da Saúde envolvendo militares, religiosos, policiais e políticos.

Manaus ficou sem oxigênio nos hospitais em janeiro de 2021 e pacientes de covid-19 morreram sufocados. Suas famílias passaram a comprar cilindros individuais para tentar salvá-los, muitas vezes sem sucesso. O Palácio do Planalto, que, em uma emergência nacional, deveria monitorar de perto os insumos, não demonstrou pressa. Pelo contrário, enquanto os manauaras pediam oxigênio, o governo enviou cloroquina e ivermectina - remédios ineficazes para a doença.

Seguindo a fina nata do negacionismo brasileiro, o governo defendeu que a solução para a pandemia se daria através de uma imunidade de rebanho que viria a partir do momento em que a maioria da população contraísse o coronavírus. Foi alertado que isso seria, primeiro, impossível, por conta das mutações do vírus que permitem a reinfecção e, segundo, abominável, porque milhares de pessoas morreriam antes de chegar nessa imunidade. Questionado sobre isso, Bolsonaro disse que "a morte é o destino de todo mundo".

No intuito de não atrapalhar sua reeleição, Bolsonaro forçou a população a ir às ruas, contando mentiras, menosprezando o vírus e a morte. O presidente, que hoje chora diante de operações da Polícia Federal que mostram fraude em sua carteira de vacinação para que pudesse fugir para os Estados Unidos, disse "chega de frescura, de mimimi, vão ficar chorando até quando" aos brasileiros que perderam entes queridos. Ironicamente, acabou atrasando a retomada da economia, porque prolongou, com seu negacionismo, o impacto da pandemia.

Se ele tivesse agido com empatia e aplicado políticas de combate à pandemia, Jair poderia ter ganho a eleição. Lula teve 50,9% dos votos válidos e Bolsonaro, 49,10%. A diferença foi de apenas 2,1 milhões entre mais de 156 milhões de eleitores. Ficaria para a história como o presidente que venceu a morte. Ficará como aliado dela. O Brasil e a ciência venceram a covid, apesar dele.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL