Associação operada por deputados tem verba milionária e contas opacas
Com verba de emendas, parlamentares bancam, todos os anos, a operação milionária de uma associação privada ligada ao MCTI (Ministério de Ciência e Tecnologia), cujos gastos têm transparência limitada e são aprovados por aliados daqueles que colocam o dinheiro.
A Softex (Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro), sediada em Brasília, firmou convênios de R$ 287,7 milhões com a União desde 2014.
Os gastos da entidade, que envolvem regalias à diretoria, como diárias de viagem de R$ 900, aluguel de carros SUV para uso diário e reembolso de R$ 1.200 mensais em gasolina, acenderam um alerta no ministério no último mês.
O motivo é que, nos últimos anos, a prestação de contas tem sido aprovada sem que a entidade tenha que detalhar seus gastos. Em 2021, por exemplo, o ministério aprovou um pagamento de R$ 300 mil da Softex à própria Softex, descrito como "serviço de terceiros PJ".
Neste ano, dois dos maiores benfeitores da associação foram os deputados petistas Gleisi Hoffmann (PR), presidente do PT nacional, e Lindbergh Farias (RJ). Juntos, eles dedicaram R$ 9,1 milhões em emendas à Softex para garantir o seu funcionamento.
O deputado federal Marcos Pereira (SP), presidente do Republicanos, foi presidente do conselho de administração da Softex, que fiscaliza a lisura dos gastos, de 2019 a janeiro deste ano. Antes dele, Celso Pansera (RJ), ex-deputado federal do PT, ocupava o cargo.
Embora deputados enviem emendas para projetos de ciência e tecnologia, o dinheiro acaba sendo usado para custear o dia a dia da organização. Foi o que aconteceu com R$ 900 mil enviados em 2021 por Paulo Ramos (PDT-RJ) e Vitor Lippi (PSDB-SP) para projetos, que tiveram sua finalidade alterada ao longo do ano.
A única ressalva do MCTI ao analisar as contas da Softex foi a eliminação dos gastos com tarifas bancárias, já que a lei proíbe que os repasses sejam usados para isso.
A última prestação de contas apresentada é de 2022, quando a entidade recebeu R$ 9 milhões, dos quais R$ 2,7 milhões foram para "assessoria ou consultoria técnica e jurídica", R$ 1,7 milhão para "exposições, congressos e conferências" e R$ 1,4 milhão para salários.
Empresas do setor de eventos, consultorias e advogados recebem centenas de milhares de reais sem que a associação esclareça a finalidade dos serviços contratados.
A reportagem escolheu alguns exemplos e questionou no que foram aplicados, como os R$ 880 mil dedicados à empresa Aparato Design e Interações Ltda em 2022, gasto que consta na prestação de contas apenas como do tipo "exposições, congressos e conferências".
Segundo a associação, trata-se de "serviços de produção de conteúdo inovador voltado à cultura maker, consultoria para projetos em execução na área e produção de animação 2D e 3D para divulgação da Ciência, Tecnologia e Inovação". Não foi esclarecido qual foi o conteúdo ou o evento em que foram empregadas as animações.
Sobre o repasse de R$ 300 mil para si mesma, a Softex afirmou que "transferências entre contas são lícitas em diversas situações, como para pagamento de salários, guias de impostos e ressarcimento da execução dos planos apresentados e aprovados".
Emendas parlamentares
Neste ano, a associação recebeu R$ 4,4 milhões de Gleisi Hoffmann, R$ 4,7 milhões de Lindbergh Farias, R$ 2 milhões de Fernando Máximo (União-RO), R$ 1 milhão de Alencar Santana (PT-SP), R$ 1 milhão de Felipe Francischini (União-PR) e R$ 1 milhão de Marangoni (União-SP), entre outros. Ao todo, foram liberados R$ 15,9 milhões.
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Quero receberO deputado Lindbergh Farias disse que sua intenção com a emenda de R$ 4,7 milhões é financiar projetos de capacitação de tecnologia nas favelas do Rio de Janeiro. Ele diz que a associação foi indicada por Pansera, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Dilma Rousseff e, hoje, presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).
"Estamos fazendo vários projetos nas favelas no Rio de Janeiro. Rocinha, Rio das Pedras. Foi para isso que a gente colocou ali. O Celso Pansera, que é presidente da Finep, conhece eles, e disse que eles sabem executar", afirmou o deputado ao UOL.
"Hoje, mais do que Legislativo, parece que somos Executivo, com o valor dessas emendas. Também acho um absurdo o valor ser tão grande, então precisamos escolher bem onde aplicar. E a juventude quer trabalhar com tecnologia, games, jogos, por isso busquei esse projeto. Vai ter que ter bolsa para as pessoas que vão fazer."
Alencar Santana e Gleisi Hoffmann também citaram projetos que pretendem financiar com suas emendas. A Softex diz que apresenta seu portfólio aos congressistas que queiram dedicar recursos à instituição, mas nega que as emendas sejam para algo específico.
"A gestão dos fundos da emenda não é incumbência do deputado, mas sim da Softex, que determina a alocação com base no plano de ação apresentado ao ministério."
Compliance
Quando Marcos Pereira assumiu como presidente do conselho de administração, em 2019, a associação enfrentou um problema, segundo ex-funcionários, já que ele era investigado pela Operação Lava Jato (o inquérito era derivado da delação da Odebrecht, anulada em 2023, e já foi arquivado).
Um acordo com a Samsung emperrou, porque a multinacional sul-coreana não aceitava financiar um projeto com o deputado à frente do conselho. Para contornar o problema, a Softex instituiu um programa de compliance, que ainda não tinha estruturado desde sua criação, em 1996.
Marcos Pereira diz que não tem conhecimento da exigência da Samsung. A Softex afirmou que "o programa de compliance da Softex foi estabelecido e deliberado pelo seu Conselho de Administração no primeiro semestre de 2019, atendendo às exigências de clientes privados".
Subcontratações
A Softex faz subcontratações volumosas. Em um convênio de R$ 12 milhões para um sistema de "inteligência analítica" apontado como suspeito pela CGU (Controladoria-Geral da União), que durou de 2017 a 2022, R$ 6,7 milhões foram para a NTC (Núcleo de Tecnologia e Conhecimento em Informática Ltda), empresa de Brasília.
A NTC foi alvo de denúncias após um contrato de R$ 48,5 milhões com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2011 para fornecer equipamentos de informática, em que o TCU (Tribunal de Contas da União) constatou um direcionamento ilegal para beneficiar a empresa.
Em 2019, a NTC foi proibida de contratar com a administração pública após descumprir um contrato com o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. A firma acumula R$ 24 milhões em dívidas com o governo federal e não está mais em atividade no mercado.
A Softex disse que pagou a empresa com a metade do dinheiro do convênio para fornecer uma "solução integrada de appliance de dados e lago de dados no desenvolvimento da plataforma de inteligência analítica para gestão pública, governança e cidadania, compreendendo o equipamento de grande porte Teradata Data Warehouse Appliance".
Além disso, a NTC teria sido responsável por "um sistema de gerenciamento de banco de dados relacional, processos em nós de nó único (SMP) ou múltiplos (MPP), 'paralelismo' para gerenciar terabytes de dados, provido de arquitetura 'Shared Nothing' (...) além das licenças de diversos softwares e de banco de dados necessários."
O UOL procurou Paulo Roberto Nascimento de Moura Silva, dono da NTC, para entender no que consistem esses "diversos softwares e bancos de dados necessários" e qual "plataforma de inteligência analítica" foi disponibilizada pela empresa subcontratada. O empresário se limitou a enviar as notas fiscais emitidas pela NTC na época.
Possíveis irregularidades
Uma análise da Controladoria-Geral da União (CGU) encontrou duas possíveis irregularidades no convênio firmado em 2017, cujo objetivo seria desenvolver uma "plataforma de inteligência analítica para gestão pública, governança e cidadania" para o governo.
O primeiro problema foram os pagamentos para o presidente da associação, Ruben Arnoldo Soto Delgado, o que a CGU destacou como potencial conflito de interesses. Ele recebeu R$ 697 mil através do convênio por integrar a equipe técnica responsável pelo projeto.
A CGU considera que há um potencial conflito de interesses quando um dirigente da instituição que recebe o dinheiro (a Softex, no caso) é beneficiado pela verba administrada por ele.
Além disso, a Softex constava no Cadastro de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) em algum momento durante o convênio, ou seja, a administração pública estava proibida de contratar a associação (desde então, a penalidade foi suspensa).
Sobre os apontamentos da CGU, a Softex afirmou ao UOL que "não sabemos do que se trata e nos arquivos internos não encontramos qualquer notificação a respeito".
Segundo a associação, Ruben Delgado foi remunerado como analista de sistemas no projeto por 52 meses, o que inclui "não apenas o salário, mas também todos os encargos pertinentes ao recurso humano, provisões e a aplicação do dissídio".
Presidente da associação desde 2011, Delgado manteve boas relações com os governantes que passaram pelo Executivo nesse período, segundo fontes do setor, e também ocupa cargos no conselho executivo do MCTI e no conselho deliberativo do CNPq.
A Topos Informática, empresa de Delgado, tem contratos com o governo federal e com o governo estadual da Bahia, mas está impedida de firmar novos instrumentos com a União após ter descumprido um contrato com a Defensoria Pública estadual de Mato Grosso.
O que diz a Softex
A reportagem questionou a Softex sobre o salário da cúpula da instituição e benefícios como diárias e vale combustível. Em resposta, a associação disse que "todas as despesas são alocadas conforme a legislação vigente e de acordo com as orientações de órgãos fiscalizadores, sejam eles privados ou públicos".
"A remuneração na Softex, incluindo benefícios, está prevista nos termos da lei, seguindo a lógica do mercado em que está inserida, baseada em pesquisas de mercado com instituições similares e que são beneficiárias da mesma natureza de recursos."
Entre os associados que integram a Softex, há ministérios como da Agricultura e do Desenvolvimento, Comércio e Indústria, além do CNPq, BNDES, Finep, além de associações privadas de ciência e tecnologia.
A associação diz ainda que "todos os recursos executados pela Softex são minuciosamente auditados por uma auditoria externa e independente, certificada pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários)", além de passar por auditorias do próprio MCTI.
"Os recursos para a execução dessas iniciativas provêm de parceiros governamentais, como o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI); empresas beneficiárias da lei de informática, estados e municípios."
"A Softex tem em seu portfólio 85 projetos entre os que se encontram em execução e os já finalizados. Além disso, a Softex impulsiona a exportação das empresas de TI por meio do Programa Brasil IT+, responsável por mais de 40% das exportações do setor."
Marcos Pereira disse ao UOL que o conselho, ocupado por ele, não era remunerado. "Fui fazer um favor e emprestar meu prestígio para a Softex por sugestão do ex-deputado Júlio Semeguine, que já tinha sito presidente do conselho e que à época da sugestão era secretário-executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia e Comunicações, cujo ministro era o Marcos Pontes. Ele sugeriu meu nome porque eu trabalhei bem a pauta de tecnologia e indústria 4.0 quando fui ministro do MDIC", afirmou.
"Além do mais, eu não tinha ingerência nenhuma na gestão da Softex. Gestão fica a cargo da diretoria executiva. O conselho é para aprovar, em reunião com vários representantes de várias entidades que o compõem, as diretrizes gerais da instituição."
O que diz o MCTI
Segundo o ministério, a ação orçamentária através da qual é destinado dinheiro à Softex não se refere a nenhum projeto específico e visa apenas a manutenção da associação.
"Desde 2014, os repasses à instituição são feitos por meio da ação orçamentária 00NQ, uma ação de operação especial prevista na Lei Orçamentária, para subvenção, que tem por objetivo unicamente a manutenção e funcionamento da entidade, assim como ocorre com outros atores, como ABNT, Academia Brasileira de Ciências, SBPC e ABIPTI."
"Nesse caso, não há exigência quanto a entrega de projetos, serviços ou bens. A indicação de emendas para esta ação em específico é feita de forma voluntária pelos parlamentares."
Ainda segundo o MCTI, "a prestação de contas feita pela entidade cabe unicamente à comprovação dos gastos de custeio e manutenção da organização para cumprimento dos seus objetivos sociais, o que é assegurado por parecer de conformidade e emissão de opinião emitida por auditoria independente registrada na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e obrigatório anualmente por força de lei".
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