Natália Portinari

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Reportagem

Órgão do governo federal, Dnocs se especializou em asfalto de má qualidade

Órgão do governo federal, o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) tem entregue sistematicamente obras de pavimentação de má qualidade, conforme atestou uma fiscalização do TCU (Tribunal de Contas da União).

Na prática, o órgão, que existe há mais de um século para combater os efeitos da estiagem, hoje dedica quase metade de seu orçamento a distribuir asfalto com recurso de emendas parlamentares.

A transição teve início quando Fernando Marcondes Leão foi indicado por expoentes do centrão, como Arthur Lira (PP-AL) e Ciro Nogueira (PP-PI), para chefiar o Dnocs. Sua nomeação ocorreu em junho de 2020, como parte de uma aproximação desse grupo político com o governo Jair Bolsonaro.

No orçamento de 2020, uma inovação legislativa criou também as emendas de relator, conhecidas como orçamento secreto, dando poder inédito à cúpula do Congresso sobre a verba federal. Parte dessas emendas foi parar no Dnocs.

Agora, obras da autarquia estão sendo investigadas na Operação Overclean, da PF (Polícia Federal), deflagrada no final do ano passado, por suspeita de fraude a licitações e corrupção de agentes públicos.

Assentamento de meio-fio sem a execução de sarjetas em Cristópolis (BA), segundo fiscalização do TCU
Assentamento de meio-fio sem a execução de sarjetas em Cristópolis (BA), segundo fiscalização do TCU Imagem: Reprodução

Até 2020, segundo a fiscalização do TCU, o Dnocs nunca havia — pelo menos nas últimas décadas, de que se tem registro — executado obras de pavimentação, já que seu objetivo é combater a seca.

O órgão existe desde 1909 e já construiu centenas de açudes e poços artesianos. Também é usado para entregar caixas d'água e fazer obras de saneamento.

De 2021 a 2023, ainda segundo o TCU, o Dnocs fez 12 pregões para pavimentar rodovias, totalizando R$ 1,2 bilhão, parte substancial do orçamento de R$ 3,4 bilhões que manejou no mesmo período.

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O órgão de controle aponta que essas obras apresentam superfaturamento, asfalto de baixa qualidade, com espessura menor que a contratada, falhas de execução e de projeto e orçamentos inexequíveis.

Análise sobre a espessura do pavimento em Cotegipe (BA), segundo fiscalização do TCU
Análise sobre a espessura do pavimento em Cotegipe (BA), segundo fiscalização do TCU Imagem: Reprodução

A auditoria, finalizada em 2023, teve enfoque na coordenadoria da Bahia, que tem o maior orçamento do Dnocs. Nos outros estados do Nordeste em que o órgão atua, há poucos contratos assinados diretamente pelas coordenadorias.

O superfaturamento nos contratos com o Dnocs com a Allpha Pavimentações, dos empresários Fábio e Alex Parente, foi o ponto de partida da Operação Overclean, da PF. A investigação se expandiu com indícios de que a Allpha seria parte de uma rede de suspeitos de pagar propina por contratos.

A CGU (Controladoria-Geral da União) encontrou um superfaturamento de R$ 4,2 milhões nas obras da Allpha bancadas pelo Dnocs nos municípios de Itaberaba, Rio Real, Barra, Jequié, Cristópolis, Juazeiro e Novo Horizonte, na Bahia.

Análise sobre a espessura do pavimento em Cotegipe (BA), segundo fiscalização do TCU
Análise sobre a espessura do pavimento em Cotegipe (BA), segundo fiscalização do TCU Imagem: Reprodução
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Essas obras foram custeadas por emendas de relator indicadas pelo então deputado federal Cacá Leão (PP-BA), hoje secretário da Prefeitura de Salvador.

O TCU também enviou fiscais para Cristópolis, onde descobriu que as sarjetas pelas quais o Dnocs pagou não foram feitas pela Allpha. As sarjetas representam 20,75% do orçamento total dessas obras, ou R$ 15 milhões.

Outras empresas também apresentaram problemas. Auditores do TCU foram a Cotegipe (BA) verificar uma obra realizada pela RJV Empreendimentos e Engenharia e descobriram que o asfalto tinha uma espessura de três centímetros, e não cinco centímetros, como havia sido contratado pelo Dnocs.

A corte de contas federal apontou que o Dnocs não tem uma equipe qualificada para fiscalizar as obras. Em 2023, dos 57 servidores da coordenadoria da Bahia, apenas um servidor de 70 anos, prestes a se aposentar, era engenheiro.

"A CEST-BA/DNOCS não fiscaliza adequadamente a execução das obras de pavimentação contratadas", concluiu a fiscalização.

Além disso, o Dnocs também deixou passar projetos de engenharia falhos, considerados inexequíveis. Isso é um problema porque as empresas vencedoras acabam tendo que pedir reajustes, e as que apresentam um orçamento adequado perdem o pregão.

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Apresentar propostas com descontos extravagantes é uma estratégia comum em obras públicas para burlar a concorrência e, depois, se beneficiar de aditivos contratuais.

Análise sobre a espessura do pavimento em Cotegipe (BA), segundo fiscalização do TCU
Análise sobre a espessura do pavimento em Cotegipe (BA), segundo fiscalização do TCU Imagem: Reprodução

Ex-coordenador do Dnocs na Bahia, Lucas Maciel Lobão Vieira foi preso preventivamente na Operação Overclean, suspeito de ter recebido propina. Ele já não ocupava mais o cargo desde 2021, quando foi exonerado após a CGU constatar um sobrepreço de R$ 192 milhões na compra de caixas d'água.

Desde 2023, o posto é ocupado por Rafael Guimarães de Carvalho, indicado do senador Ângelo Coronel (PSD-BA). Ele foi alvo de mandado de busca e apreensão, suspeito de atuar para favorecer o grupo criminoso em contratações.

Em outros estados, também há indicados políticos. O Dnocs em Alagoas é comandado por Juliano Ribeiro Balbino, que substituiu Arlindo Garrote (PP) como superintendente para que o último pudesse se candidatar a prefeito de Estrela de Alagoas (ele saiu derrotado da eleição).

Juliano e Garrote são ligados a Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados. A coordenadoria de Alagoas também tem um contrato com a Allpha, de R$ 20,3 milhões.

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Em relatório da PF obtido pelo UOL, é citado um contato entre Juliano e Anderson Gomes dos Reis, funcionário da Allpha. A PF registra, porém, que não encontrou indícios de irregularidades.

"Em chat do dia 2/9/2024, Anderson encaminha para Alex (Parente, sócio da Allpha) print de conversa com 'Juliano Balbino Alagoas...', provavelmente Juliano Ribeiro Balbino, atual coordenador do Dnocs em Alagoas. A conversa é sobre atraso de pagamento por falta de envio de certidão por parte da Allpha."

"Até então, salvo melhor juízo, nada desabonador foi encontrado na conversa. Foi citada apenas para fins de registo e para demonstrar, caso seja preciso mais à frente, que houve contato de Anderson com mais um servidor do Dnocs, dessa vez no Estado de Alagoas."

Em Sergipe, o coordenador estadual é Daniel Rezende, indicado pelo deputado Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE).

O Dnocs também é um dos poucos órgãos em que, no ano passado, gestores foram de encontro à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de bloquear emendas parlamentares.

Em Alagoas e Sergipe, o órgão utilizou irregularmente R$ 16 milhões de emendas de bancada para reservar verba no orçamento para pagar caminhões, retroescavadeiras, diárias de viagem, entre outros gastos, no período em que elas estavam bloqueadas.

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Procurado, o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, ao qual o Dnocs é subordinado, disse que "empresas ou autarquias vinculadas, como o Dnocs, têm autonomia para realizarem empenho de recursos inerentes às ações por elas executadas".

O Dnocs foi procurado desde quarta-feira (8), mas não respondeu ao contato do UOL. As empresas citadas também não retornaram.

Reportagem

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54 comentários

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Paulo Sergio Vidal

Se isso tudo fosse somente um caso de polícia, até que seria suportável, mas é uma coisa nojenta! Que classe política podre e nefasta que toma conta deste país! E saber que chegaram ao poder através do voto. Triste...

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Renato Cesar Vidotto

 Farra das emendas parlamentares sem rastreamento, absurdo!

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Paulo Roberto Rafael de Freitas

E os Deputados continuam chantageando o Executivo e o Judiciário para não estancarem essa roubalheira. Dino neles.

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