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Observatório das Eleições

Com a bala e com a bíblia: mulheres e as eleições de 2020

Delegada Martha Rocha (PDT) candidata a Prefeitura do Rio de Janeiro, em discurso em 2018 na Assembléia Legislativa Fluminense - Reprodução
Delegada Martha Rocha (PDT) candidata a Prefeitura do Rio de Janeiro, em discurso em 2018 na Assembléia Legislativa Fluminense Imagem: Reprodução

08/11/2020 04h00

Flávia Biroli e Monize Arquer*

O aumento no número de candidaturas que levam no nome títulos policiais ou militares já foi registrado. A larga maioria é de homens, que ocupam nesse caso uma fatia ainda maior que a do conjunto total de candidaturas. Isso é esperado, se considerarmos que as mulheres são cerca de 12% dos efetivos das polícias militares e menos que isso nas carreiras nas Forças Armadas. Apesar disso, foram as candidaturas de mulheres policiais e militares que mais cresceram entre 2016 e 2020 - mais de 300% no caso delas, 65% no deles.

Elas continuam a ser minoria nesse grupo. Mas, enquanto em 2016 elas correspondiam a 3% do grupo que pretende mobilizar o eleitorado usando junto a seu nome um título policial ou militar, hoje são 5,8%. O maior crescimento se deu entre as candidaturas ao cargo de vice-prefeita, em que passaram de 2,2% em 2016 para 8,1% em 2020. Nesse caso, o crescimento mais acentuado acompanha o quadro geral do aumento de candidaturas femininas e pode indicar que os partidos viram nas vices uma possibilidade de beneficiar os homens que estão na cabeça da chapa com recursos que, por lei, deveriam ser dirigidos às mulheres, aproveitando brechas na lei.

Candidatas a prefeita e títulos militares

Entre as candidatas a prefeita, 321 levam esses títulos junto a seu nome, algumas delas disputando as prefeituras das capitais. Na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a Delegada Marta Rocha (PDT) está em segundo lugar nas pesquisas, empatada com o atual prefeito e candidato à reeleição Marcelo Crivella (Republicanos). Em Goiânia (GO), o terceiro lugar está com a candidata Delegada Adriana Accorsi (PT). Com filiação partidária e agenda de esquerda, elas têm um perfil distinto do da maioria das mulheres que recorreram à força e à segurança para construir sua relação com o eleitorado.

Na disputa pela prefeitura de Recife (PE), a Delegada Patrícia (Podemos) aparece em terceiro lugar; em Sergipe (SE), o segundo lugar nas intenções de voto está com a Delegada Danielle (Cidadania). Ambas ganharam projeção em operações de combate à corrupção, com teor lavajatista. Na corrida pela prefeitura de Campo Grande (MS), a Delegada Sidnéia Tobias (Podemos), em quinto lugar nas pesquisas, foi a primeira mulher a comandar o Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos no estado.

A maior parte das candidaturas está ainda à direita das candidatas mencionadas acima, concentrando-se principalmente no Partido Social Liberal (PSL), seguido pelo Partido Social Democrático (PSD) e pelo Republicanos. Olhando de modo agregado, nota-se que o aumento dessas candidaturas foi sustentado, principalmente, pelos partidos de direita. A esquerda, que já apresentava um percentual baixo, teve um aumento mais sutil, enquanto o centro teve um declínio considerável. Esse padrão acompanha as taxas vistas para o total de candidaturas femininas, que subiu apenas entre os partidos de direita, acompanhando o aumento desse grupo de partidos dentro do total de candidatos lançados em 2020.

img1 - Dados do TSE, filtrados por delegado, soldado, cabo, sargento, tenente, capitão, major, coronel, general e comandante, com suas inflexões de gênero e possíveis abreviaturas. - Dados do TSE, filtrados por delegado, soldado, cabo, sargento, tenente, capitão, major, coronel, general e comandante, com suas inflexões de gênero e possíveis abreviaturas.
Mulheres candidatas com nomes associados a títulos policiais e militares, por espectro ideológico
Imagem: Dados do TSE, filtrados por delegado, soldado, cabo, sargento, tenente, capitão, major, coronel, general e comandante, com suas inflexões de gênero e possíveis abreviaturas.

Trata-se, assim, de candidaturas que se associam à agenda da "ordem", característica da direita. A agenda não é nova, mas os perfis predominantes têm relação com dois fenômenos que ganharam peso no Brasil, a Operação Lava-Jato, iniciada em 2014, e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Em um contexto no qual os partidos se viram mais pressionados a cumprir a legislação, as cotas também podem ter aberto espaço a uma inclusão que vem junto com a aderência às identidades com apelo eleitoral no momento.

Mas a noção de "ordem" à qual mulheres candidatas, em sua maioria de direita, se associam não fica restrita à força e à segurança. A identidade religiosa também é expressiva no apelo à ordem, nesse caso à ordem moral, junto ao eleitorado.

Identidade religiosa e ordem moral

Em 2016, as mulheres representaram 21,7% das candidaturas que levam títulos religiosos junto a seus nomes; em 2020, chegaram a 26,8%. Nesse caso, o aumento foi maior na disputa pelo cargo de vereador, em que elas são 27,3%, seguido do cargo de vice-prefeito, em que correspondem a 19,3% das candidaturas com identidade religiosa. Na corrida para prefeito, elas era 8,2% em 2016 e são hoje 6,2%, ampliando ainda mais a predominância masculina de candidatos pastores e bispos, assim como daqueles que se identificam como "irmãos".

Pelos títulos, podemos dizer que a maior parte dessas candidaturas é do campo evangélico. O maior número de mulheres candidatas está nos partidos ligados a grandes igrejas pentecostais e neopentecostais, com destaque para Republicanos (com 340 mulheres candidatas, em um total de 9328 candidaturas com identidade religiosa) e Partido Social Cristão (PSC) (com 330, em um total de 5813). Embora a religião em si não signifique uma associação ao conservadorismo ou à direita ideológica, a distribuição entre os partidos mostra que estamos, mais uma vez, predominantemente no universo da direita.

No gráfico abaixo nota-se que, novamente, essas candidaturas estão mais presentes nos partidos de direita, com um aumento de 3 pontos percentuais em relação a 2016. Houve pouca mudança nos demais espectros. Mas o que chama a atenção é que o aumento no número de candidatas que utilizam o título religioso deu-se também considerando o total de candidaturas femininas. Em 2016, elas representavam 1,5% das candidaturas de mulheres em partidos de direita, passando a 1,7% em 2020. Entre os partidos de centro e de esquerda, elas passaram de 0,7% e 0,9%, respectivamente, em 2016, para 1,1% em 2020.

img2 - Dados do TSE, filtrados por pastor, apóstolo, bispo, irmão, missionário, padre e reverendo, com suas inflexões de gênero e possíveis abreviaturas. - Dados do TSE, filtrados por pastor, apóstolo, bispo, irmão, missionário, padre e reverendo, com suas inflexões de gênero e possíveis abreviaturas.
Mulheres candidatas com nomes associados a títulos religiosos, por espectro ideológico
Imagem: Dados do TSE, filtrados por pastor, apóstolo, bispo, irmão, missionário, padre e reverendo, com suas inflexões de gênero e possíveis abreviaturas.

As candidatas que associam seu nome às forças policial-militares ou à bíblia encontram-se em um contexto de controle masculino dos partidos, com pressões para que cumpram a legislação de cotas registrando um mínimo de 30% de candidatas e reservando a elas o mesmo percentual dos recursos do fundo eleitoral partidário e do tempo de propaganda. Também se tornaram candidatas em uma conjuntura na qual a agenda da ordem, como recurso às forças policiais-militares ou à moral conservadora, ganhou maior centralidade no país. Mas seu perfil e os caminhos que encontram para se candidatar não são idênticos.

Diferenças entre candidatas com títulos militares e religiosos

Se entre as policiais-militares as chaves para o aumento das candidaturas são a Lava-Jato e Bolsonaro, as religiosas remetem a outros processos - que, claro, se entrecruzam com estes. Relacionam-se a um fenômeno que tem correspondentes em outros países latino-americanos e vem se desenhando há mais tempo, no qual têm destaque as candidaturas evangélicas conservadoras, como apresentado no livro "Gênero, neoconservadorismo e democracia", de Flávia biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Vaggione.

É possível trabalhar com a hipótese de que as igrejas evangélicas estejam se tornando um caminho para a participação política das mulheres, que são maioria entre os fiéis. Diferentemente do que se deu em períodos anteriores da história brasileira, em que mulheres encontraram caminhos para a política associadas às Comunidades Eclesiais de Base católicas e, portanto, na oposição à ditadura e em movimentos com potencial progressista, nesse caso o que se destaca é o conservadorismo.

Entre as policiais e militares, o enfrentamento dos estereótipos da domesticidade e da fragilidade feminina podem estar mais presentes - ainda que possam acomodar-se ao conservadorismo moral, como têm demonstrado candidatas e também parlamentares eleitas em 2018. As religiosas vêm de um campo que tem apostado em mulheres para promover o apelo a uma ordem moral conservadora, que inclui a reação a avanços nos direitos e nas políticas públicas referenciados pela igualdade de gênero e pelo respeito à diversidade.

Para complicar mais as coisas, essas candidaturas femininas com identidade religiosa têm características que as aproximam dos segmentos. No conjunto das candidaturas femininas às eleições municipais de 2020, 49,54% são brancas. Entre as policial-militares, 50,4% são brancas, acentuando a estatística geral. Já entre as religiosas, o percentual de mulheres brancas cai para 31,3%, com 66,9% de candidatas negras. Assim, os partidos de direita podem ter se tornado um caminho para candidaturas de mulheres negras, com liderança e visibilidade em comunidades religiosas locais. Com agenda conservadora e anti-igualitária, igrejas e partidos com forte presença evangélica vão colocando algumas mulheres na linha de frente das disputas morais.

Classificação dos partidos:
Esquerda - PCdoB, PCB, PCO, PDT, PMN, PPL, PROS, PSB, PSOL, PSTU, PT, PV, Rede e UP.
Centro - MDB, PPS, PSDB.
Direita - Novo, PAN, Patriota, PTB, DEM, PGT, PHL, PL, PMB, PP, PRN, PR, PRB/Republicanos, Prona, PRP, PRTB, PSC, PSDC/DC, PSL, PST, PTdoB/Avante, PTC, PTN/Podemos e Solidariedade.

* Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp (2003). É professora do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisadora do CNPq e foi presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20). É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018) e Gênero, neoconservadorismo e democracia (com Maria das Dores C. Machado e Juan Vaggione, Boitempo, 2020).
Monize Arquer é doutora em Ciência Política pela Unicamp, com período sanduíche na Universidade de Oxford, e pesquisadora do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop - Unicamp). Atualmente atua em estágio pós-doutoral no INCT/IDDC.

Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br