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Reinaldo Azevedo

É preciso falar também do ato destrambelhado de Fux; não é rei absolutista

Luiz Fux não pode se ver tentado a emular com Luís XIV (retrato acima), ainda que ambos tenham uma cabeleira invocada. A corte é avessa a absolutismos. E tem de ser - Reprodução
Luiz Fux não pode se ver tentado a emular com Luís XIV (retrato acima), ainda que ambos tenham uma cabeleira invocada. A corte é avessa a absolutismos. E tem de ser Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/10/2020 07h58

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É claro que a decisão de Marco Aurélio, que soltou um traficante perigoso — quando poderia tê-lo mantido em prisão preventiva — cria um choque na sociedade. E os delírios punitivistas vêm à tona. Pior: se fossem todos tornados realidade, bandidos de grosso calibre continuariam a se multiplicar. Os pobres-coitados seriam os primeiros a quebrar a cara, como sempre acontece com sociedades submetidas a processos de fascistização.

Uma das vertentes fascitoides no Brasil contemporâneo ainda influentes é a Lava Jato. Seus porta-vozes estão transformando uma decisão desastrada de Marco Aurélio na evidência de que a Constituição tem de ser fraudada, com a aplicação da pena antes do trânsito em julgado. Mentem que, se não for assim, criminosos como André do Rap ficarão soltos. No post anterior, evidencio ser isso uma mentira.

A operação igualmente quer voltar ao tempo em que prisões preventivas valiam como prisões perpétuas porque precisa transformar investigados em reféns, como vem fazendo nos últimos seis anos na sua luta liberticida contra a política.

Infelizmente, o ministro Luiz Fux é um dos capturados por esse espírito. Seu discurso de posse já anunciava coisas preocupantes, quando resolveu abençoar a Lava Jato em tom de desafio, como a dizer: "Pouco me importam as transgressões que ela cometa. Em nome do combate à corrupção, vale tudo". Como revela a mais recente reportagem do site The Intercept Brasil, procuradores já ousam escolher o titular de uma vara federal.

Marco Aurélio aplicou mal o fundamento correto do Artigo 316 do Código de Processo Penal e pôs uma garantia do estado democrático e de direito na mira dos tais fascistoides. O habeas corpus não poderia ter sido concedido, ainda que o Ministério Público, para empregar expressão sua, tenha "claudicado".

Ocorre que, infelizmente, uma aberração ainda maior, do ponto de vista do Estado legal, foi cometida. E há a respeito um silêncio ou ignorante ou cumplice. Para cassar a decisão de Marco Aurélio, Fux apelou aos poderes que supostamente lhe dariam o Artigo 4º da Lei 8.437. Com a devida vênia, estamos diante de um caso flagrante de abuso de autoridade perpetrado pelo número um da nossa corte maior.

Se o instrumento a que apelou é esse, vamos ver o que ele diz:
"Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas."

Não duvido de que a soltura de André do Rap represente "grave lesão à ordem e à segurança públicas", mas, como resta evidente, não se trata de uma "ação movida contra o Poder Público e seus agentes". Vale dizer: a lei a que apelou o ministro não se aplica ao caso.

E quando é que um presidente do Supremo comete essa barbeiragem? Justamente quando ele não dispõe de nenhum outro instrumento legal para exercitar o mando — de resto, inútil porque a fuga já estava em curso.

É inaceitável que operadores do direito e a imprensa — ou parte considerável dela — decidam olhar para o olho lado, fazendo de conta que o presidente do STF não praticou um ato atrabiliário, ainda que se possa concordar com o seu conteúdo.

A ser assim, temos um ministro que, na Presidência do Supremo, apelará a uma competência que não tem para se impor. Convém que Fux tome cuidado com grilos falantes do caos, que estimulam o seu cesarismo.

O ministro já decidiu retirar as ações penais das turmas sem ao menos fazer uma consulta prévia a seus pares, pondo em sessão administrativa uma pauta que, embora antecipada, estava mais para um enigma do que para uma informação.

Também é o ministro que concedeu uma liminar contra a criação do juiz de garantias — vontade expressa do Congresso, dentro das prerrogativas que a Constituição assegura ao Poder —, deixando claro que não tem pressa nenhuma em levar a questão para o plenário. Ele não é juiz da Lava Jato, apesar do "In Fux We trust" de Sergio Moro.

Espero que encontre logo o caminho. Não está no Supremo como representante de um ente de razão que decidiu se colocar acima da Constituição. E não pode ele próprio se impor ao arrepio do ordenamento legal. Se qualquer lei é lei para que exerça o seu arbítrio, as coisas vão se complicar bastante, e seu mandato será tumultuado.

O erro de Marco Aurélio não dá a Fux o direito de atuar na presidência do STF como monarca absolutista que só conhece a lei da vontade.

Uma hora o tal André do Rap passa, sendo substituído por outro.

Já a degradação do Estado legal dura muito mais tempo.

Vai atuar para pacificar o país ou para incendiá-lo?

A única agenda possível a um ministro do Supremo é o triunfo da ordem legal. Religiões laicas são tão perigosas como as escatológicas quando fora do lugar.

Acredite na Constituição, ministro!