Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bruno e Dom: Por que PF descartar mandantes é aberração técnica e política
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Não foi a Polícia Federal que chegou aos assassinos do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips, mas os indígenas e as pessoas ligadas à Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Não só forneceram as informações necessárias para identificar os executores de Pereira e Phillips como se encarregaram de buscar na mata e na beira do rio os indícios do crime. Não há demérito nenhum nisso. Os policiais agiram corretamente. Ouvir a comunidade local em casos de crime dessa natureza é o primeiro passo. Tanto melhor se a polícia pode contar com a expertise, como contou, de quem conhece a região. Assim, a PF, como ente do Estado, poderia estar agora a dizer: "Fizemos com competência o nosso trabalho." Mas aí vem o despropósito absoluto.
Sem investigação nenhuma; com um trabalho que se limitou a contar com a colaboração dos locais para identificar o assassinos e localizar os "remanescentes humanos" — como Anderson Torres chamou os corpos esquartejados —; ignorando alertas da Univaja devidamente expostos num documento, que indicam a atuação de um grupo criminoso que atua na região, organizado e estruturado, eis que a PF anuncia descartar a hipótese de que o crime tenha mandantes.
"Com esse posicionamento, a PF desconsidera as informações qualificadas, oferecidas pela Univaja em inúmeros ofícios, desde o segundo semestre de 2021 [...] Tais documentos apontam a existência de um grupo criminoso organizado atuando nas invasões constantes à terra indígena Vale do Javari, do qual Pelado e Dos Santos fazem parte", afirma a entidade.
"Pelado" é Amarildo Oliveira, e "Dos Santos", seu irmão Oseney da Costa de Oliveira. Segundo a PF, o primeiro confessou o crime. A Univaja informa ainda:
"Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena, os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades ilegais."
QUESTÃO ELEMENTAR
Talvez um demoniozinho fique soprado ao ouvido do leitor e da leitora: "Ah, essa entidade também tem viés político e interesse em atribuir uma mera vingança a uma grande arquitetura criminosa".
Então lançarei algumas questões a esse suposto leitor recalcitrante às teias do óbvio.
Não se conhece nem o número do inquérito que apura as mortes. Araújo e Phillips desapareceram no dia 5. Passaram-se apenas 12 dias. Nesse tempo, a PF se dedicou, com a ajuda da comunidade local, à procura de sinais dos desaparecidos e a localizar suspeitos que cruzaram seu caminho.
Nos 10 dias em que seus homens estavam ocupados com a tarefa principal — localizar os desaparecidos e identificar os assassinos —, houve tempo de fazer uma apuração aprofundada, que permite descartar mandantes? Com que intenção o comando da Polícia Judiciária Federal põe a conclusão à frente do inquérito?
A PF se interessou ao menos em conversar com as pessoas que são identificadas pela Univaja como envolvidas em constantes invasões à reserva indígena? Já investigou e descartou uma possível ligação entre a pesca e a caça legais na área e a lavagem de dinheiro do narcotráfico, que comprovadamente opera na região?
O governo e seus bate-paus acusam a imprensa — e, sei lá, talvez uma conspiração intergaláctica — de forçar a mão para relacionar o governo Bolsonaro aos assassinatos. Já estabeleci aqui a devida distinção entre "culpa" e "responsabilidade". Pode não ser culpado, mas é responsável.
O comportamento da PF, no entanto, parece ser o de quem busca escamotear também as culpas. Nunca se viu esse ente do Estado brasileiro chegar tão depressa a uma conclusão. É uma barbaridade e um acinte. E tem cheiro de provocação.
Quem disse que Bolsonaro não vai aonde o problema está? É aguardado neste sábado em Manaus. Para uma motociata.
Por delicadeza, não se deve perguntar o que ele vai comemorar.
A conclusão da PF, antecipando-se ao inquérito, restará como mácula na história da Polícia judiciária federal. Não há juízo técnico que a explique. Mas se pode encontrar facilmente uma razão política.
Uma coisa é certa e irrespondível: não houve tempo nem investigação suficiente para descartar a existência de mandantes. Como a PF faz isso de antemão, a lógica obriga a concluir que quem ganha é a impunidade.