Reinaldo Azevedo

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Opinião

Lula, os negros do RS, disputa eleitoral até os 120 e os zurros malcriados

A pura literalidade pode atentar contra a informação e alimentar o preconceito e a estupidez.

Quando chegou a mim o título "Lula diz que não sabia haver tantos negros do Rio Grande do Sul" (e variantes), pensei algo assim: "O presidente precisa parar de improvisar porque isso pode armar o discurso reacionário". Cheguei a achar que ele tivesse feito alguma consideração pouco informada sobre a composição da população gaúcha, segundo a cor da pele.

Aí fui assistir ao vídeo. Reproduzo a fala:
"Não sei se vocês perceberam: com toda desgraça da enchente, por mais que a gente veja, eu falei pra Janja no domingo: 'É impressionante. Eu não tinha noção de que, no Rio Grande do Sul, tinha tanta gente negra.' E, no Fantástico, apareceu muita gente negra. Eu falei: 'Não é possível!' E aí a Janja me falou: 'É porque são os mais pobres e porque moram nos lugares mais arriscados de ser vítimas dessas coisas'. Então, eu, quando convido [autoridades para acompanhá-lo], é porque eu quero facilidade para que as pessoas compreendam a necessidade de agilizar as votações na Câmara, no Senado..."

A tentativa de usar a frase do presidente para criar picuinha só revela a ignorância de quem imaginou que estava tendo uma sacada "esperta" para cutucar o presidente.

É evidente que ele estava falando nas entrelinhas. A sua suposta surpresa — "Eu não tinha noção que no Rio Grande do Sul tinha tanto negro" — era a deixa para a elucidação do problema, numa fala que ele atribuiu a Janja: "É porque [os negros] são os mais pobres e moram nos lugares mais arriscados".

Parvos são os que acharam que poderiam usar Lula para dar uma lacrada. O Rio Grande do Sul é o Estado mais branco do país: 78,42%, segundo o Censo de 2022. A Bahia é o menos: 19,81%. O Estado que agora enfrenta a catástrofe conta com 21,19% de negros: 14,67% autodeclarados pardos e 6,52% pretos.

Ignoro se a impressão do presidente corresponde aos fatos no que respeita aos colhidos pelas águas — creio que esse levantamento não foi feito —, mas é preciso destacar que, dado o contexto, o seu "eu não sabia" significa "eu sabia". Ele certamente tem a informação de que se trata na unidade mais branca da federação. Haver, segundo diz, um número tão grande de negros entre as vítimas — é provável que sejam mais de 21,19% — indica a velha e conhecida exclusão a se manifestar, qualquer que seja o desastre.

Estão tratando a fala do presidente como gafe ou impropriedade. Não. Trata-se apenas de uma constatação econômica, sociológica, que expõe uma das mazelas do Brasil. Tudo o que acontece de ruim por aqui costuma ser pior para os negros, mesmo quando são a minoria. E antes que aquele cara, vocês sabem quem, resolva nos iluminar com a sua ignorância, esclareça-se: é claro que desgraceiras como a que vimos atingem a todos. Mas as vítimas preferenciais costumam ser a de sempre.

Lula brincou ainda que viverá até os 120 anos e que vai disputar mais umas dez eleições. Aí foi acusado de usar o anúncio de benefícios para fazer campanha. Bem, a acusação só faz sentido caso se acredite que chegará àquela idade. Mesmo quando se é Lula — e ninguém no país tem mais motivos do que ele para ser otimista e para acreditar em mudanças do destino —, também essa declaração parece enunciar o contrário do que anuncia.

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Uma das críticas recorrentes da extrema-direita a Lula sustenta que, velho demais, ele não estaria entendendo o "novo momento", seja lá o que isso signifique. Não por acaso, diz-se o mesmo sobre Joe Biden nos EUA. Essa gente é igual em toda parte. De toda sorte, fica aqui uma constatação, que embute uma sugestão ao presidente: construções discursivas como aquela sobre a composição da população gaúcha e as vítimas da tragédia se tornaram complexas demais para estes tempos, incapazes de entender uma ironia, um contraste, um paradoxo, uma metáfora, uma entrelinha.

Já não se pode mais bater na cangalha para o burro entender.

Se bater, o burro zurra, escoiceia e escreve. Sem entender.

Ah, sim: isso é uma metáfora. Deixem os burros, os de verdade, em paz.

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Imagem: Reprodução

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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