Assim não, Armínio! Ou: E se o BC declarasse ser independente do Brasil?
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e espécie de oráculo de parte importante do jornalismo econômico, ou quase isso, concedeu uma entrevista à Folha em que falou de muita coisa. Dá para entender que ele não vê nada de bom no governo. Há uma pauta oculta, ou nem tanto, entre os que pensam como ele que obrigaria o presidente a rever o entendimento com o eleitorado nas urnas: desvincular aposentadorias e benefícios do salário mínimo; rever as vinculações constitucionais para saúde e educação; pôr fim à pauta de investimentos públicos...
Há um viés catastrofista no que diz, entremeado por um tom professoral e, reitero na palavra, oracular, com advertências que, às vezes, parecem vocalizar uma espécie de ameaça. Os especialistas certamente se encarregarão de debater esses aspectos. Quero me ater a um ponto e reproduzo o trecho pertinente. Admita Armínio ou não, ele está pondo em dúvida a credibilidade da futura composição do BC. E, como resta óbvio, ele ainda não a conhece. Vou ter de lembrar uma coluna de Delfim Netto na Folha no longínquo ano de 2007. Antes, vamos ao trecho a que me referi.
FOLHA - Das causas que vêm sendo apontadas para as taxas futuras de juros bastante altas -- juros nos EUA, situação fiscal, dúvidas sobre a nova direção do BC, tentativas de intervenção em empresas --, alguma pesa mais?
ARMÍNIO - As duas grandes na área macroeconômica estão ativas. O ponto máximo mais recente foi de fato a mudança da meta, sempre uma coisa muito séria, salvo numa situação excepcional.
No que diz respeito ao Banco Central, já havia alguma insegurança com relação à troca no comando. É um momento importante. Se quem entrar se meter a besta, a inflação começar a subir e o mercado perder a confiança, vai ser um grande fiasco político, inclusive, e rápido.
De onde viria o fiasco?
Claramente um aumento nas taxas de juros de mais longo prazo, como de fato ocorreu após esse placar dividido do Copom de maio e depois do afrouxamento da meta fiscal. O que se viu foi um sinal, um sinal relevante, mas eu diria ainda modesto. Poderia ser algo bem mais forte.
Juros futuros girando em 11,8% ao ano ainda são modestos?
Não, não são, mas, infelizmente, pode piorar. Pode piorar, sim. Não sou dos mais pessimistas com relação a isso, mas tenho algum receio.
Seria um erro tão banal. Esse discurso assim mais frouxo na política monetária só atrapalha, porque fica a desconfiança. Havendo desconfiança com relação à moeda, o custo aumenta. É uma tristeza ver como a coisa está sendo conduzida, as pressões políticas explícitas, os ataques ao Banco Central, a ideia de que responsabilidade fiscal é uma grande maldade.
RETOMO
Antes que comente o que diz Armínio sobre o BC, quero lembrar uma coluna de Delfim Netto no distante 25 de julho de 2007.
Dada a fórmula da água, H2O, o ex-ministro da Fazenda imagina o que poderia acontecer se o solitário átomo de oxigênio resolvesse se revoltar contra a prevalência do hidrogênio.
Escreve:
"Suponhamos que os átomos de oxigênio pensassem, aprendessem, pudessem comunicar-se, transmitir seus desejos e necessidades e organizar-se como "classe" (ou sindicato) do oxigênio. Um átomo mais esperto logo assumiria a liderança da "classe" e manifestaria o seu descontentamento com a superioridade do hidrogênio (ele tem dois e eu tenho apenas um) na formação da água. No limite, ele decretaria a "greve geral" do oxigênio, que se recusaria a assistir impassível à continuação da desigualdade humilhante. Imagine a surpresa dos químicos com a "resistência" do oxigênio. Imagine o que seria da já complexa química com os átomos pensando, organizando-se, comunicando-se, aprendendo, sentindo desconforto e procurando a felicidade. E imagine a dificuldade de explicar ao oxigênio pensante que a igualdade desejada (HO ou H2O2) não seria mais a água e que o seu infinito valor desapareceria."
Delfim não estava doidão. As primeiras linhas de seu texto anunciavam aonde queria chegar com a sua parábola:
"PARA ENTENDER por que a economia é uma ciência social (e moral!), e não uma ciência da natureza como a física ou a química, basta considerar um exemplo simples que todos aprendemos no antigo curso secundário. Foi o grande professor Luiz Ferlante quem me ensinou, em 1939, que a "misteriosa" fórmula H2O é o símbolo que representa a água."
Delfim apelou à impossível revolta dos átomos para chegar a esta conclusão relevante:
"Pois bem, essa é a complexidade das ciências sociais, onde não é possível repetir a experiência no laboratório e os átomos são agentes e pacientes das interações: pensam, aprendem, comunicam-se, têm interesses e, mais do que tudo, formam uma 'concepção do mundo' com valores desejados como a liberdade para realizar-se plenamente, organização social razoavelmente justa e razoavelmente igualitária e se organizam para obtê-los. É por isso que precisam de um Estado forte e sob controle constitucional que garanta a eficiência produtiva. Essa, como disse Keynes, não é a civilização, mas apenas a preliminar para a possibilidade da civilização..."
VOLTANDO A ARMÍNIO
E agora começo a voltar a Armínio. A economia não é lei da física ou da química. Átomos econômicos, como Armínio -- ou Roberto Campos Neto --, "são agentes e pacientes das interações: pensam, aprendem, comunicam-se, têm interesses e, mais do que tudo, formam uma 'concepção do mundo'", ainda que eu não duvide de que ambos possam se sentir o próprio oxigênio.
É claro que, em economia, uma "ciência social e moral", o que se diz tem peso. Um átomo de oxigênio continuará a se ligar a dois de hidrogênio para fazer a água, pouco importa a opinião que se possa ter a respeito. Enquanto houver as precondições para que existam no mesmo meio, não haverá juízo de valor que possa mudar essa realidade.
Alinho-me com os economistas, e não são poucos — fazem porte da opinião pública, mas não da opinião publicada —, que consideram injustificados, beirando o terrorismo retórico, os ataques à política econômica. É claro que a pancadaria cotidiana não é irrelevante.
Dou um exemplo: no dia 24 passado, Campos Neto participou de um evento na Fundação Getúlio Vargas e fez previsões pessimistas sobre a economia, o risco para a inflação e para a equilíbrio fiscal decorrente da tragédia do Rio Grande do Sul, restando até um tanto de especulação sobre a credibilidade futura do BC. Os mercados estavam abertos. Resultado: os juros futuros começaram a subir imediatamente. Isso lhes parece responsável?
Em economia, átomos "têm interesses".
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Quero receberREAÇÃO ABSURDA
Vejam lá o trecho que destaquei da entrevista de Armínio. Ainda ecoa a reação absurda -- e começou em setores da imprensa -- que se seguiu à "divisão" do BC na arbitragem da Selic: quatro votaram por uma queda de 0,5 ponto -- conforme o próprio Copom havia sinalizado que faria --, e cinco, por apenas 0,25 ponto.
E se deu, então, algo realmente fabuloso. Os únicos com alguma razão para chiar eram os quatro vencidos porque, afinal, cumpriam eles as regras do jogo e seguiam a pretérita sinalização futura da autoridade monetária. Os cinco vencedores, eles sim, haviam roído a corda.
A parte vencida, no entanto, não protestou. Viu-se algo realmente singular: a reação rancorosa partiu dos vitoriosos. Não me refiro, claro!, aos diretores, mas àqueles que com eles concordavam. "Como? Quatro ousaram dissentir? Justamente os indicados pelo presidente Lula?" E se concluiu, então, que isso poderia indicar o risco de o presidente interferir no BC, de modo que independentes e autônomos, de verdade, eram os cinco triunfantes.
Escrevi aqui a respeito. E observei que o ataque absurdo a quem seguiu as diretrizes do próprio BC tinha um outro horizonte. Era já uma tentativa ou de desautorizar ou de encabrestar a composição futura do órgão. Reproduzo:
"Estão, por acaso, a sugerir que os diretores indicados por Lula têm alguma mácula de origem ou padecem de déficit de credibilidade? No começo de 2025, sete dos nove terão sido indicados pelo atual presidente; no começo de 2026, todos. Se bastam quatro para assustar 'uzmercáduz', havendo nove, alguém vai se lembrar de sugerir, sei lá, um golpe no BC? Ou será que essa futura diretoria terá de deixar de lado a sua tarefa e administrar os humores da especulação?
Pergunto: tais considerações são compatíveis com a ordem democrática e com a própria autonomia do BC? É inaceitável a ilação de que os que escolheram o corte anteriormente previsto não o fazem por livre convencimento, mas porque estão pressionados".
Ah, sim: também se dá como certo que o PT e Lula protestarão, o que é considerado pelos idiotas um crime de lesa economia. Muitos desses valentes acham que a 'liberdade de expressão' compreende até a pregação de golpe de estado, mas não a crítica ao Banco Central"
A FALA DE ARMÍNIO PROPRIAMENTE
Diz Armínio:
"As duas grandes [causas para elevação de juros futuros] na área macroeconômica estão ativas. O ponto máximo mais recente foi de fato a mudança da meta, sempre uma coisa muito séria, salvo numa situação excepcional.
No que diz respeito ao Banco Central, já havia alguma insegurança com relação à troca no comando. É um momento importante. Se quem entrar se meter a besta, a inflação começar a subir e o mercado perder a confiança, vai ser um grande fiasco político, inclusive, e rápido."
O próprio arcabouço prevê a possibilidade de mudança da meta, o que não é inócuo. Ele afirma que já havia "alguma insegurança" em relação à troca do comando do BC. Insegurança de quem? Homem sempre elegante, de fala mansa, esbarrou na grosseria para alertar: "Se quem entrar se meter a besta"... Bem, aí prevê disparada da inflação, perda de confiança do mercado, fiasco político...
Lula certamente não quer um fiasco político, e Armínio, um dos carentes do que chamo "extremismo de centro", pode não ser o conselheiro que o presidente tem em mente. Não! Eu não acho que o doutor quer que o governo se exploda. Mas me parece inaceitável que se infira o risco de laxismo com a inflação porque, afinal, o Copom "votou dividido". Ademais, uma queda de 0,5 ponto da Selic era absolutamente defensável.
IMPEDIR O GOVERNO DE GOVERNAR
Quando se investe nesse tipo de especulação, tenta-se impedir o governo de governar segundo as regras do jogo. Existe uma lei sobre a autonomia do BC. Lula escolherá os diretores segundo o que ela dispõe. E os nomes serão submetidos ao Senado.
Acho indecente que se queira, desde já, estabelecer uma espécie de "eleição", entre os átomos interessados, dos futuros candidatos a compor a diretoria do banco.
Armínio não vê virtudes no governo. Há quem as enxergue. É do jogo. E notem que não me refiro aqui a outros aspectos de sua entrevista. Esse governo "horrível" concentra as melhores taxas de inflação, crescimento, emprego e aumento real da renda do trabalho em 10 anos. Está mais perto de ser elevado a grau de investimento por agências de classificação de risco do que de ir para o buraco. Não parece fazer muita diferença para os críticos. É do jogo.
Opiniões, no entanto, não são os átomos da água. Fala-se sempre de um determinado lugar, com preocupações definidas e com uma agenda. Transformar a composição futura do Banco Central, desde já, numa espécie de guerra de posições me parece ir além do razoável.
ENCERRO
Num dado momento da entrevista, Armínio diz:
"Ando lendo sobre o tema. Li recentemente "Democracia para Realistas", não traduzido ainda [Democracy for Realists: Why Elections Do Not Produce Responsive Government, de Christopher Achen e Larry Bartels], muito interessante, muito pesquisado. Faz falta o que esses dois coautores fizeram: investigar como é que funciona realmente essa história, como é que as pessoas votam."
Não conheço o livro, mas pesquisei o que andaram escrevendo a respeito. Consta que os autores chegam à conclusão de que eleições não produzem governos eficazes. Os chineses também acham. E a responsabilidade pela ineficácia, obviamente, seria dos próprios eleitores, que nem sempre fariam escolhas racionais. Faz sentido. A questão é saber qual é a alternativa.
Estou vendo a hora em que alguém ainda dirá: "Não basta a autonomia do BC. Precisamos realmente da independência total". Bem, Campos Neto já é um entusiasta da chamada "autonomia financeira" do órgão... Mais um pouco, e alguns valentes ainda proporão que a autoridade monetária se desvincule totalmente do Poder Executivo e seja infensa a qualquer "influência da democracia ineficaz".
Esse Conselho de Guardiões do bem seria indicado por quem? Vai saber. Mas poderia ser presidido por Armínio Fraga. Só com pessoas responsáveis, é claro!
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