Lula nos deu uma chance de enfrentar um dilema sobre o Holocausto
Três dias se passaram e, no Brasil, nós continuamos bombardeados pela repercussão da fala do presidente Lula sobre a investida de Israel contra o Hamas em território palestino.
A "análise" mais repetida pela grande imprensa no Brasil, em diferentes tons, por diferentes especialistas, sobre a fala de Lula foi basicamente que o "Holocausto dos judeus não se compara". Sim, o Holocausto é um doloroso referencial na nossa história. Mas por que o Holocausto seria único? Essa não é uma pergunta de resposta simples.
Das aulas de Relações Internacionais aos comentários da grande imprensa ocidental sobre direito internacional, a naturalização do fato de o Holocausto dos judeus na segunda guerra, na Europa, ter sido o "basta" para que o mundo elaborasse um compromisso global com os direitos humanos, a partir de uma Declaração Universal não é trivial.
A definição territorial nas Américas, de países como Brasil e Estados Unidos, custou a vida de mais de 70 milhões de indígenas. A travessia forçada pelo Atlântico dos navios negreiros no contexto da escravidão custou a vida de mais de 4 milhões de africanos e africanas.
No fim do século 19, a investida colonial de Leopoldo II, da Bélgica, assassinou mais de 10 milhões de homens e mulheres no Congo. A Alemanha, entre 1904 e 1908, dizimou a população da Namíbia, os povos Herero e Nama. Um episódio cruel que ficou conhecido como o primeiro genocídio do século 20.
O que dizer da própria segregação racial nos Estados Unidos, que, além de tratar pessoas negras como lixo e à margem da vida cívica, trazia junto o elemento do linchamento. Era "comum" que pessoas negras fossem linchadas até a morte e os corpos eram pendurados em árvores.
Como o mundo conviveu com isso, sem se reunir para encontrar uma saída e a responsabilização dos culpados?
Importante ressaltar que, sim, os nazistas de Hitler foram buscar nas técnicas alemãs usadas contra a Namíbia a inspiração para desenvolver os campos de concentração. E, também, foram literalmente aos Estados Unidos durante a segregação para aprender sobre ela e ter, assim, o conhecimento técnico que ajudaria a desenvolver os guetos para confinar os judeus.
É possível pensar a partir disso que, se a Namíbia tivesse sido o momento do "basta", ou a gestão da segregação de pessoas negras nos Estados tivessem provocado uma represália global, talvez, e apenas talvez, o próprio ambiente para que o Holocausto ocorresse na Alemanha de Hitler teria sido evitado.
Então, eu volto à pergunta anterior. O que tornou o genocídio dos judeus pela Alemanha nazista uma "barbárie real", a verdadeira "banalização do mal", enquanto todos os episódios anteriores, mesmo com características semelhantes, eram vistos e tratados como apenas "História"?
Recorrer à imagem do Holocausto como referência não pode ser uma ofensa ao povo judeu por si só. As palavras também são alvo de disputas, dependendo do poder de imagem que elas possuam. E, neste sentido, o Holocausto tem muito poder.
Por isso, o Holocausto é também um importante "recurso descritivo", e o episódio da fala de Lula é bem ilustrativo sobre isso. É pelo desconforto que o Holocausto causa que ele pode ser acionado como um recurso para comunicar a gravidade, o absurdo de algo.
O desconforto causado pela comparação da escravidão com o Holocausto parece ser a chave para que alguém, principalmente uma pessoa branca, consiga captar que escravidão não diz respeito apenas a pessoas negras forçadas a trabalhar, exploradas por senhores brancos. Como o Holocausto, a escravidão era sobre gente tratada como lixo, bestializadas, com a dignidade humilhada, torturada com trabalhos forçados e cruelmente executada depois.
Nem tudo pode ser comparável ao Holocausto. Nem toda comparação é válida. Mas nem toda comparação é uma diminuição da dor e do sofrimento do povo judeu.
Lula foi muito específico no uso da comparação. Sua crítica foi ao exército de Israel e à forma como Netanyahu e seus generais conduzem o conflito. A crítica de Lula está correta, e parece que grande parte dos líderes globais entenderam exatamente isso. O Holocausto é único para os judeus. E isso deve ser respeitado.
Mas tratar o Holocausto como único na História, incomparável com o extermínio em massa de qualquer outro povo, uma espécie de propriedade exclusiva, não é interessante nem mesmo para o povo judeu.
É um excepcionalismo que, no limite, expõe o quanto alguns sofrimentos na história são mais importantes e envolvem vidas que realmente valem mais do que outras. O Holocausto é um mal histórico que assume múltiplas formas na história atravessando povos distintos.
O que também pode forjar o elo de solidariedade entre os povos oprimidos e perseguidos pelos senhores da guerra. Como o povo palestino pode estar sofrendo agora sob Netanyahu.
237 comentários
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Luiz Santos
A ação desastrosa ( G E N O C I D A ) de Netanyahu, o Bolsonaro de Israel, precisa ser tratada com firmeza. Tudo que Lula falou está de acordo. 1 - Confinar uma população de mais de 2 milhões de pessoas ao sul do pequeno território de Gaza e ainda restringir a entrada de água, luz, medicamentos, ajuda humanitária. Ali temos Idosos, crianças, mulheres passando fome e frio. ( Campo de Concentração) e 2 - Travar uma guerra em meio a população civil, SEM A MENOR PREOCUPAÇÃO COM AS CONSEQUÊNCIAS, já causaram a morte de mais de 40.000 civis palestinos. ( Genocídio) Posições como a do Brasil e da África do Sul em confrontar Israel são extremamente corretas. Cortar relações com Israel seria o segundo passo e que outras nações façam o mesmo
Glaucia Falsarella Pereira Foley
Ronilso, teu artigo foi a análise mais sóbria, equilibrada, inteligente e elegante que eu li sobre o episódio. Sensacional!
Antonio Catigero Oliveira
Foi a melhor reflexão que li até o momento. Perfeito.