Eleições americanas: é (principalmente) sobre raça, estúpido!
Nós (estou me incluindo na imprensa brasileira) ainda continuamos a falar de Donald Trump como um candidato bem-sucedido, um outsider, um "forasteiro da política", um "antissistema" que conseguiu tomar conta do Partido Republicano, a ponto de acuar desafetos e forçar a adesão de ex-rivais, como o próprio J.D. Vance, agora escolhido como seu vice-presidente.
Grande parte das análises continua a martelar no consenso da ascensão de Trump, vinculada diretamente com o elemento "ressentimento, frustração e sensação de abandono de uma classe média branca empobrecida, suburbana e rural". Sim, o apelo de Trump a este público é real. Esse ressentimento sócio-econômico também é real. Mas ele está longe de explicar a força de Trump.
E é aqui que está um gap problemático nas análises e coberturas em geral. Por alguma razão, há uma invisibilidade quase que total da clivagem racial nas análises feitas no Brasil, embora o fator raça seja relativamente comum na cobertura dos Estados Unidos.
Não é apenas sobre Trump ser o "maioral" dos white trash (lixo branco), os brancos empobrecidos que se acham esquecidos pela elite política de Washington. Porque não é apenas sobre esse grupo ter os seus empregos de volta. É sobre ter o "seu" país de volta. E isto significa ele ser hegemonicamente branco, cristão e conservador.
Nos Estados Unidos, há uma vasta literatura (e matérias jornalísticas) sobre como a eleição de Obama impactou a mentalidade e o imaginário do americano branco médio de acharem que americanos "ilegítimos" chegaram longe demais.
Uma diversidade de pesquisas, de prestigiados institutos, mostram que a questão racial, em especial o ressentimento racial das pessoas brancas, foi mais determinante para a escolha de Donald Trump para ganhar a nomeação do Partido Republicano para as eleições de 2016 do que para John McCain e Mitt Romney em 2008 e 2012 respectivamente.
Pesquisadores de extremismo têm um consenso sobre o notável crescimento de grupos supremacistas brancos organizados que surgiram a partir de 2008, ano em que Barack Obama chega à Casa Branca. E em novembro de 2016 uma igreja negra no Mississippi foi queimada e teve as palavras "vote Trump" pixada nas paredes.
Isto para não se estender falando do apoio massivo dos cristãos brancos para Donald Trump, enquanto ele assumia a defesa de uma supremacia cristã, mesmo tendo ele mesmo uma religiosidade duvidosa. Esse canto da sereia de Trump foi fundamental para a ascensão do chamado nacionalismo cristão, que, hoje, é uma das grandes ameaças à democracia americana.
Apesar de tudo isso, as análises no Brasil fogem de raça e religião. Estranho que o fator político reconhecidamente estruturador de desigualdades e tensões sociais seja ignorado Preferimos repetir o discurso consensual do prestígio de Trump com uma classe branca que se sente esquecida e pura e simplesmente ressentida.
Soa como trivial que a convenção do Partido Republicano, que está acontecendo esta semana, seja uma imensa massa praticamente homogênea de brancos de olhos claros orgulhosos com a sensação de que Trump voltará. Gente que a todo momento sobe ao púlpito para dizer "os verdadeiros americanos".
Talvez, parte dessa indiferença da cobertura no Brasil seja reflexo também dos próprios rostos que fazem as coberturas, em todos os noticiários televisivos ou escrevendo na grande imprensa. É realmente desconfortável comparar a diversidade de âncoras, repórteres, comentaristas e articulistas negros e negras em todos os grandes canais americanos.
Pense em Abby Phillip, Van Jones e Don Lemon, na CNN, em Jonathan Capehart e Melissa Harris-Perry, na MSNBC, na Linsey Davis, na ABC ou, é claro, no veterano Lester Holt, na NBC, apenas para ficar no mínimo de rostos negros que lideram coberturas jornalísticas e análises (e eu nem citei comentaristas).
Pode parecer trivial, mas a distância que nós, aqui no Brasil, estamos disso, em termos de diversidade de rostos no jornalismo, inevitavelmente reflete na superficialidade, repetição e limites de nossas análises.
Com o atentado sofrido por Trump no último sábado, as análises agora parecem se debruçar sobre como o episódio parece ter unido os republicanos e deixado o ex-presidente mais forte.
Parece que ninguém está olhando como Trump pode ser o cara ideal justamente por ser o cara disposto a deixar uma parte significativamente cruel dos americanos, via seu racismo atualizado como política e o nacionalismo cristão como cultura, e não via economia e guerra, colocarem os Estados Unidos e o mundo em risco.
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