Como o inquérito no STF poupou o celular de Moro
Resumo da notícia
- Investigadores ouvidos pela coluna dizem que é incomum uma pessoa sob investigação indicar quais mensagens devem ser copiadas pela Polícia Federal
- Cópia seletiva tem sido feita quando o depoente é testemunha ou colaborador, o que não é o caso do ex-ministro
- Procurada pela coluna, a PGR afirma que a apreensão do aparelho ainda poderá ser solicitada ao STF
Documentos que integram o inquérito aberto no STF para averiguar as denúncias do ex-ministro Sérgio Moro sobre a suposta interferência do presidente Jair Bolsonaro no comando da PF (Polícia Federal) mostram como a investigação poupou o telefone celular do ex-ministro de um exame aprofundado. Até o momento, 13 dias depois de o ex-ministro ter divulgado mensagens do seu celular, nem a PGR (Procuradoria Geral da República) pediu ao STF a apreensão do aparelho nem a PF sugeriu a medida à PGR ou ao STF.
Os delegados da PF e os procuradores da República designados pela PGR aceitaram que o próprio ex-ministro indicasse as mensagens que deveriam ser baixadas pela polícia do seu telefone, e elas se resumiram a dois contatos: Bolsonaro e a deputada federal Carla Zambelli. A perícia conduzida pela PF, cujo laudo já foi anexado ao inquérito, confirmou que somente mensagens dos dois contatos apontados por Moro foram copiadas, obedecendo a requisição dos delegados do caso.
As conversas virtuais de Moro com outras pessoas, que poderiam ou não conter elementos relativos à investigação, não foram copiadas.
Investigadores com experiência em casos criminais ouvidos pela coluna confirmaram que é incomum e talvez inédito o que ocorreu durante o depoimento de Moro no sábado (2) na sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba (PR), quando ele indicou as conversas que seriam "relevantes" para o caso.
A cópia seletiva de diálogos armazenados em um aparelho eletrônico tem ocorrido em algumas operações da PF, mas só quando uma testemunha ou um colaborador decide entregar mensagens específicas, por exemplo, a prova de uma tentativa de extorsão. A partir da requisição de um delegado, o perito criminal federal pode extrair apenas os dados previamente selecionados e devolver o aparelho ao proprietário, às vezes no mesmo dia - e isso até tem sido estimulado, para evitar uma sobrecarga nos arquivos da PF.
O caso de Moro, porém, é diferente porque ele figura no inquérito na condição de investigado, conforme consta no sistema de acompanhamento processual do STF (Supremo Tribunal Federal) e na requisição para a abertura do inquérito feita pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Sendo um investigado, o cenário muda completamente.
'Cientificado'
No pedido que enviou ao STF para a abertura do inquérito, Aras disse que da leitura do pronunciamento feito por Moro ao deixar o cargo no ministério, no dia 24, ele enxergou a possibilidade de crimes cometidos por Bolsonaro mas também por Moro, como denunciação caluniosa e crime contra a honra. O ministro do STF Celso de Mello acolheu o pedido de Aras e abriu o inquérito 4831.
Mais uma confirmação sobre a condição de Moro no inquérito ocorreu durante o depoimento que ele prestou na superintendência da PF em Curitiba (PR), no último dia 2. No começo do termo, os dois delegados da PF responsáveis pelo ato fizeram constar que Moro foi "cientificado acerca dos seus direitos constitucionais, inclusive o de permanecer em silêncio". Essa garantia constitucional é informada aos investigados e réus, não às testemunhas, que legalmente devem falar a verdade, sob pena de falso testemunho, segundo advogados consultados pela coluna.
Cronologia
Mesmo investigado, o ex-juiz federal escolheu o que a PF deveria analisar no aparelho celular. No depoimento, disse que as mensagens que trocou com Bolsonaro e Zambelli "são as relevantes, no seu entendimento, para o caso". Explicou ainda que "não disponibiliza as demais mensagens pois tem caráter privado (inclusive as eventualmente apagadas), ou se tratam de mensagens trocadas com autoridades públicas, mas sem qualquer relevância para o caso, no seu entendimento".
Com base na manifestação de Moro, a delegada que atua no caso, Christiane Correa Machado, lavrou um "termo de apreensão" do telefone e o entregou na mesma tarde à perícia da PF em Curitiba. Na requisição, a delegada escreveu que o celular foi "apresentado pelo sr. Sergio Fernando Moro para extração das mensagens trocadas, via aplicativo Whatsapp, com presidente da República (contato 'Presidente Novíssimo') e com a deputada federal Carla Zambelli (contato 'Carla Zambelli II')".
A perícia atua a partir da requisição dos delegados. O laudo foi concluído e datado também de 2 de maio. O documento diz que o exame foi "realizado com a finalidade de extrair as mensagens trocadas em duas conversas do aplicativo Whatsapp, conforme solicitação de exames". Ele confirma que "foi realizada apenas a extração dos dados requisitados na solicitação de exames ('mensagens trocadas; via aplicativo Whatsapp, com o presidente da República (contato 'Presidente Novíssimo') e com a deputada federal Carla Zambelli (contato 'Carla Zambelli II')"'.
A delegada devolveu o telefone para Moro na mesma data, 2 de maio.
'Extração completa'
A condição de investigado de Moro muda completamente o cenário, segundo os especialistas ouvidos pela coluna. Um deles fez a seguinte comparação: a polícia é convidada para entrar na casa de um suspeito de um crime mas ele permite que os policiais vasculhem apenas o quarto, não a sala, a cozinha ou o banheiro. "É claro, sendo assim tem que pedir um mandado judicial para olhar tudo."
Outro esclareceu que, "em uma situação normal", a primeira providência da polícia seria ter à mão uma ordem judicial de busca e apreensão do aparelho. No inquérito do STF, a apreensão não foi solicitada pela PGR e, assim, não foi expedida uma ordem pelo ministro relator, Celso de Mello. Com o aparelho apreendido, "o normal é fazer a extração completa" dos dados, diz um investigador.
Os dados privados - citados por Moro como um empecilho - são armazenados sob sigilo, à parte, e não devem ser utilizados na investigação. Essa orientação serviu, por exemplo, para tratar dos celulares de milhares de investigados pelas operações da PF ao longo dos anos, incluindo as da Operação Lava Jato, conduzidas por Moro.
"Depois de feita a garantia da integridade dos dados, a perícia disponibiliza os dados para a equipe da investigação, que analisa o conteúdo e faz a correlação entre elas e o objeto da investigação, a fim de separar a mensagens que têm relação com a investigação. É como se estivessem ouvindo uma gravação telefônica e aí aparece uma mãe, uma esposa, conversando sobre assuntos privados. Eu digo que aqueles assuntos não têm nada de relevante e deixo de lado. Assuntos privados não são colocados em relatório", diz o investigador.
O maior problema da apreensão apenas das conversas selecionadas por Moro é que o inquérito do STF pode ter perdido elementos que também guardam conexão com a investigação. Por exemplo, se depois da conversa com Bolsonaro ele tratou com outra pessoa do mesmo assunto, essa outra conversa, que não foi copiada, não entrará no radar da investigação. E ela não poderia ser usada como elemento de prova tanto pela defesa quanto pela acusação, já que inexiste no processo.
'Escandaloso'
Além dos investigadores, três experientes advogados criminalistas de Brasília e de São Paulo disseram que é, no mínimo, incomum que um investigado possa determinar o escopo de uma perícia. O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, um crítico ferrenho de Moro, que já atuou para mais de 20 clientes investigados pela Lava Jato, considerou "escandaloso" o que houve no depoimento.
"É o contrário de tudo o que ele fez na Lava Jato. Ele agiu como se estivesse coordenando a investigação, mas ele é um investigado. Não é nada comum um investigado indicar que só determinadas mensagens devam ser copiadas. Acho até que ele tem direito de indicar as cópias de seu interesse, mas é diferente ele escolher o que vai ser investigado. Ele disse 'eu quero que você pegue isso e aquilo'. Ora, quem sabe qual o interesse na investigação é o investigador."
O advogado Luís Henrique Machado, que também defendeu clientes na Lava Jato, disse que considera o ato de Moro "não ilegal, mas muito incomum". A entrega do celular, por Moro, foi "um ato de liberalidade, por livre e espontânea vontade", mas é raro um investigado determinar os limites de uma apuração.
Para Machado, não há dúvida de que Moro figura como investigado no inquérito, e não como testemunha. "A testemunha é obrigada a falar a verdade sobre o que viu ou ouviu, sob pena de ser processada em caso de falso testemunho. O investigado não, pode recorrer ao silêncio porque não pode produzir prova contra si mesmo. Como ele foi advertido sobre seu direito ao silêncio, no começo do depoimento, trata-se de um investigado, sem dúvida."
O advogado Jonas Marzagão, criminalista há mais de 30 anos na defesa de investigados em inúmeras operações da PF em São Paulo, disse que após a negativa de Moro em entregar o aparelho para a cópia integral de todas as mensagens -desejo que o ex-juiz expressou no depoimento-, deveria ter sido requisitada ao STF uma ordem de busca e apreensão, mesmo que depois do depoimento.
"O que me causou a estranheza foi o aparelho não ter sido periciado inteiro. Realmente não é a prática. Inclusive para a tentativa de recuperação das mensagens que o ex-ministro disse ter apagado. Pelo menos uma tentativa." Por outro lado, o criminalista disse que, apesar de Moro tecnicamente constar como investigado no processo, ele não o considera um investigado, pois partiu dele a iniciativa de revelar as supostas pressões que vinha sofrendo de Bolsonaro. "Como investigado, ele não é obrigado a produzir provas contra si mesmo."
'No processo'
Procurado pela coluna por meio de sua assessoria, o advogado de Moro, Rodrigo Sánchez Rios, informou que o "assunto será abordado apenas no âmbito do processo". A coluna indagou ao advogado por que o ex-ministro não autorizou a perícia em todo o seu aparelho e se ele colocará seu telefone celular à disposição da investigação para uma nova perícia, dessa vez em todo o conteúdo do aparelho.
A PGR (Procuradoria Geral da República) informou que "a diligência realizada no último sábado (2), autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, consistiu em ouvir o ex-ministro Sergio Moro e facultar a ele a entrega de documentos que considerasse aptos a comprovar suas declarações -no caso, eram documentos digitais. Trata-se de uma diligência inicial. Não é possível começar um inquérito com busca e apreensão, é preciso haver mais elementos para fundamentar uma medida como essa".
Segundo a PGR, "se houver necessidade de busca e apreensão do celular ou outras medidas tão gravosas quanto, reserva-se a PGR para, oportunamente, se necessário, solicitar a respectiva autorização judicial".
A Polícia Federal, em Brasília, também procurada na tarde desta quinta-feira (7), não havia se manifestado até o fechamento deste texto. A coluna quis saber por que os dois delegados não requisitaram uma perícia ampla no aparelho e se eles, caso entendam necessário, poderão sugerir a apreensão do telefone.
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