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Rubens Valente

Socorro a indígenas e quilombolas foi o mais vetado por Bolsonaro, diz ONG

9.jul.2020 - Com covid-19 e isolado, presidente Jair Bolsonaro (sem partido) passeia em frente ao Palácio da Alvorada, sua residência oficial - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
9.jul.2020 - Com covid-19 e isolado, presidente Jair Bolsonaro (sem partido) passeia em frente ao Palácio da Alvorada, sua residência oficial Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

13/07/2020 18h11

Resumo da notícia

  • Projeto de lei de enfrentamento à pandemia teve 16 pontos vetados por Jair Bolsonaro no último dia 8; agora proposta voltou ao Congresso
  • Entre os pontos vetados estavam a obrigação do governo federal de garantir água potável, alimentação, leitos e outras medidas emergenciais
  • Projeto é voltado para povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais

Os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei que buscava assegurar medidas emergenciais, durante a pandemia, para povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais foram os maiores entre os projetos durante a crise, apontou a assessoria jurídica da organização não governamental Terra de Direitos. Para a entidade, os vetos tornaram a proposta "praticamente inócua".

O projeto de lei 1142/2020 teve como autora a deputada federal Rosa Neide (PT-MT) e como relatores a deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), na Câmara, e o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), no Senado. O texto foi elaborado com a participação de organizações e movimentos sociais. O projeto foi aprovado pela Câmara no dia 21 de maio e pelo Senado quase um mês depois, em 16 de junho.

Passaram-se 20 dias até a sanção presidencial. No último dia 8, o Diário Oficial trouxe a publicação da lei com os vetos de Bolsonaro.

Entre outros pontos, o presidente retirou a obrigação do acesso das aldeias à água potável; do fornecimento de materiais de higiene, de limpeza e de desinfecção de superfícies em aldeias ou comunidades indígenas, oficialmente reconhecidas ou não, inclusive no contexto urbano; da oferta emergencial de leitos em hospitais e de UTIs (Unidades de Terapia Intensiva), aquisição ou disponibilização de ventiladores e de máquinas de oxigenação sanguínea; da distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e demais povos e comunidades tradicionais; e da criação de um programa específico de crédito para indígenas e quilombolas durante o Plano Safra 2020-2021.

Os vetos presidenciais obrigam que a matéria retorne ao Congresso Nacional para uma sessão conjunta entre Câmara e Senado, o que poderá ocorrer já nesta quinta-feira (16). Os vetos poderão ser rejeitados de maneira conjunta por meio de uma votação secreta.

'Emergência sanitária'

A Constituição prevê que vetos presidenciais podem ocorrer quando as matérias contrariam interesse público ou a própria Carta. Dos principais projetos durante a pandemia, a lei voltada para indígenas e quilombolas foi a mais vetada por Bolsonaro, seguida pela que instituiu o programa emergencial de manutenção do emprego e da renda e pela que promoveu mudanças no auxílio emergencial, com 13 e onze objeções, respectivamente.

Na maior parte dos vetos, o motivo levantado por Bolsonaro foi a suposta "ausência de demonstrativo de impacto orçamentário e financeiro". A Terra de Direitos responde que as medidas propostas se encaixam "nas despesas orçamentárias de caráter emergencial previstas durante o estado de calamidade pública e emergência sanitária de importância nacional". Ou seja, a emergência sanitária imposta pela pandemia do novo coronavírus tem gerado uma série de gastos extraordinários que nem por isso deixam de ser feitos.

No caso das cestas básicas e outros insumos para produção agrícolas, Bolsonaro argumentou ainda que já existem programas adotados pelo governo no mesmo sentido. Sobre isso, a Terra de Direitos apontou que "o argumento de previsão já existente de políticas dentre as despesas orçamentárias ordinárias não se aplica". A entidade comparou com outras medidas já tomadas pelo governo no enfrentamento dos efeitos econômicos da pandemia.

"Uma analogia possível seria dizer que microempresas, contempladas por políticas governamentais ordinárias, então, por isso, não poderiam ser beneficiárias de orçamentos emergenciais no contexto da pandemia. De fato, as previsões já constantes de normas infraconstitucionais trazem rito ordinário de execução das políticas na burocracia estatal que não contemplam a emergência, a exemplo do acesso às cestas básicas, aos benefícios e auxílios."

Em outro trecho vetado do projeto, que falava sobre acesso dos indígenas ao serviço público de saúde, o governo argumentou que os indígenas "já se encontram contemplados na repartição das receitas que se pretende criar".

"A justificativa de previsão dessa medida em normas já existentes ignora os objetivos de um Plano Emergencial. Ora, o PL 1142 [pretende] associar a algumas dessas políticas e medidas já existentes mecanismos de facilitação de acesso como simplificação de documentação, visando suprimir essa lacuna de acesso e facilitação, sobretudo nas políticas de soberania alimentar", rebateu a entidade.

O pedido de inclusão de comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultura Palmares no Plano Safra, por exemplo, diz a entidade, "visava estender o acesso dessa população a uma política de soberania alimentar que, neste momento, não pode estar condicionada à regularização dos seus territórios, como está hoje regulado, sobretudo pela fragilidade da política de titulação dos territórios". Na prática, afirmou a Terra de Direitos, não estão garantidos meios de produção para "90% dessas comunidades" quilombolas.

No trecho que o projeto mencionava necessidade de a União adotar mecanismos que facilitassem o acesso ao auxílio financeiro, o governo Bolsonaro alegou que a proposta era "contrária ao interesse público em razão da insegurança decorrente da necessidade de deslocamento da entidade pagadora a milhares de comunidades do Brasil". Ocorre que um dos principais vetores de disseminação do vírus nas comunidades indígenas tem sido a necessidade de os índios terem que se deslocar aos centros urbanos para receber o auxílio financeiro do governo. A proposta queria inverter essa lógica a fim de diminuir a movimentação dos indígenas e aumentar o isolamento social.

A assessoria jurídica da Terra de Direitos notou como "importante elemento das razões de veto" uma "coesão dos ministérios na rejeição das medidas de proteção social" contra a disseminação da doença nos territórios indígenas. Segundo as advogadas, houve a reafirmação de que "nem mesmo as pastas ministeriais que teriam a atribuição de proteção desses povos dentre suas responsabilidades comprometem-se com as suas vidas".

'Medidas inócuas'

A análise foi feita por Maira Moreira, assessora jurídica da Terra de Direitos e doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio e por Vercilene Dias, assessora jurídica da entidade, mestre em direito pela UFG (Universidade Federal de Goiás) e integrante da comunidade quilombola Kalunga.

Os vetos, de acordo com a organização, "tornam praticamente inócuas todas as medidas inicialmente previstas no texto".

"Até o momento, povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais seguem com apoio estatal precário para a manutenção de medidas de isolamento comunitário e também com dificuldade de acesso ao auxílio emergencial. Isso porque não houve uma adaptação mais significativa do programa para abarcar as situações específicas dessas comunidades, uma vez que muitas não possuem acesso à internet e tampouco uma multiplicidade de aparelhos celulares."

O país tem cerca de 1 milhão de indígenas, distribuídos entre 305 povos indígenas e dezenas de grupos isolados não contatados. Há cerca de 5 mil comunidades quilombolas no país, das quais apenas 124 tiveram seus títulos regularizados até agora, além de 3,6 mil certificadas pelo governo.

De acordo com Terra de Direitos, na audiência durante o 171º período de sessões da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) realizado em fevereiro de 2019 em Sucre, na Bolívia, "o Estado brasileiro não respondeu aos questionamentos dos comissários e das organizações sociais peticionárias, entre elas a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Terra de Direitos acerca da agenda sobre as crescentes violações sofridas por comunidades quilombolas brasileiras, bem como quanto à existência de um Plano Nacional de Titulações, até hoje nunca apresentado".