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Rubens Valente

Invasões em terras indígenas sobem 135% no 1º ano de Bolsonaro, diz Cimi

Incêndio provocado em agosto de 2019 por fazendeiros que ocupam parte da Terra Indígena Valparaíso, reivindicada há 29 anos pelo povo Apurinã, em Boca do Acre, Amazonas - Denise Sterbova / Relatório Cimi 2019
Incêndio provocado em agosto de 2019 por fazendeiros que ocupam parte da Terra Indígena Valparaíso, reivindicada há 29 anos pelo povo Apurinã, em Boca do Acre, Amazonas Imagem: Denise Sterbova / Relatório Cimi 2019

Colunista do UOL

30/09/2020 11h00

Resumo da notícia

  • Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, foram 256 episódios de invasões, exploração ilegal de recursos e danos diversos ao patrimônio
  • Presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho (RO), dom Roque Paloschi diz que indígenas são atingidos por "política nefasta e criminosa" do governo
  • Levantamento do Conselho Indigenista Missionário, vinculado à CNBB, sobre violência contra povos indígenas é divulgado anualmente desde 1996

As invasões em terras indígenas, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio mais do que dobraram no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, passando de 109 casos, em 2018, para 256 no ano passado - um crescimento de 135%.

É o que aponta o relatório anual de violência dos povos indígenas, de 216 páginas, produzido pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), e divulgado nesta quarta-feira (30) em Brasília. O levantamento é divulgado anualmente desde 1996.

Também houve um aumento de casos em 16 das 19 categorias de violência contra indígenas compiladas pela publicação, incluindo as "mortes por desassistência", que passaram de 11, em 2018, para 31 em 2019, as ameaças de morte, que cresceram de oito para 33, as lesões corporais dolosas, que subiram de cinco para 13, e as mortes de crianças de zero a cinco anos, que passaram de 591, em 2018, para 825 no ano passado.

'Política nefasta e criminoso do atual governo', diz arcebispo

O presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, dom Roque Paloschi, afirma no texto de apresentação que as comunidades originárias e tradicionais "são atingidas diariamente por uma política nefasta e criminosa do atual governo".

"Se em anos anteriores denunciávamos as violências numa perspectiva de que houvesse ações e empenho para combatê-las, hoje somos obrigados a reconhecer que o maior agressor dos povos indígenas e da natureza é o governo Bolsonaro, que não se envergonha de ser tratado como genocida pelas redes sociais, que não se envergonha de ser considerado fascista e não demonstra remorso pelos crimes que são praticados. Aliás, os incentiva sem pudor ou receio de que possa vir a ser responsabilizado criminalmente por essas práticas", escreveu o arcebispo.

No sumário executivo, o levantamento "reitera o retrato de uma realidade extremamente perversa e preocupante do Brasil indígena no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na Presidência do país. A intensificação das expropriações de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem e no loteamento, consolida-se de forma rápida e agressiva em todo o território nacional, causando uma destruição inestimável".

Segundo o Cimi, "as terras indígenas estão sendo invadidas de modo ostensivo e pulverizado de norte a sul". Houve algum tipo de ataque contra 151 terras de 143 povos indígenas, distribuídos em 23 estados.

"Em alguns episódios descritos no relatório, os próprios invasores mencionavam o nome do presidente da República, evidenciando que suas ações criminosas são incentivadas por aquele que deveria cumprir sua obrigação constitucional de proteger os territórios indígenas, patrimônio da União."

Bolsonaro "submeteu a Funai ao controle dos ruralistas", diz relatório

Em muitos dos 256 casos, houve mais de um tipo de violência praticado contra as terras indígenas, totalizando 544 ocorrências. Foram 89 ações para exploração ilegal de madeira ou desmatamento, 39 para garimpos ilegais, 37 para abertura de espaço para gado, soja e milho, 31 incêndios, 25 casos de empreendimentos de infraestrutura, sete contaminações de água ou alimentos por agrotóxicos e até três casos de tráfico de drogas, entre outros tipos.

No Amazonas, estado recordista de ataques com 56 casos, houve invasão de garimpeiros na Terra Indígena Vale do Javari, onde vivem indígenas isolados; no Maranhão, os desmatamentos aumentaram na Terra Indígena Arariboia, dos índios guajajaras; no Pará, onde ocorreram 41 invasões, a Terra Indígena Munduruku é alvo da ação de garimpeiros, palmiteiros e madeireiros; em Rondônia, a estimativa é que mais de 180 invasores entraram em abril de 2019 na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau; no mesmo estado, a Polícia Federal apreendeu maquinários e tratores que ajudaram a desmatar 11 mil hectares da Terra Indígena Karipuna; em Roraima, o governo admite 3,5 mil garimpeiros ilegais, enquanto os indígenas falam em 20 mil invasores.

O ano de 2019 também foi marcado, no segundo semestre, pelo "Dia do Fogo", quando fazendeiros e madeireiros combinaram, por meio do aplicativo de telefone celular Whatsapp, de atear fogo ao mesmo tempo em pontos diversos de mata. O relatório do Cimi apontou que a destruição atingiu "dezenas de milhares de hectares".

O relatório do Cimi apontou as dificuldades do país de fazer frente à onda das invasões. De acordo com o documento, Jair Bolsonaro "fragilizou os órgãos de proteção, fiscalização e combate às invasões", como o Ibama e o ICMBio. Além disso, "submeteu a Funai (Fundação Nacional do Índio) ao controle dos ruralistas".

"Estes [ruralistas] convocaram delegados da Polícia Federal, alinhados com perspectivas predatórias dos bens públicos e com os interesses dos empresários do agronegócio e da mineração, para coordenar o órgão indigenista oficial e torná-lo uma 'agência reguladora de exploração das terras indígenas'", diz o relatório.

O Cimi aponta que a Funai, "agora controlada por agentes externos ao indigenismo", adotou cinco principais comportamentos. O primeiro foi o "desmantelamento da estrutura fundiária que realizava os procedimentos demarcatórios". Ao mesmo tempo, determinou a suspensão de todas as demarcações de terras indígenas que estavam em andamento e, ao mesmo tempo, a revisão de "procedimentos concluídos, muitos deles já com as Portarias Declaratórias publicadas - uma das etapas finais do procedimento de demarcação".

Numa terceira linha de ação, a Funai passou a se "retirar/excluir de processos judiciais onde era ré ou autora, tendo em vista a defesa jurídica dos interesses da União e dos povos indígenas". Todos esses processos, diz o Cimi, "questionavam as demarcações ou requeriam sua continuidade"

A quarta medida foi "abrir suas portas para ouvir e atender os interessados em impor limites às demarcações e explorar as terras ancestrais". Por fim, o quinto movimento prioritário foi "nomear militares ou policiais para cargos de chefia nas Coordenações Regionais pelo Brasil - ou seja, além de controlarem a sede nacional, eles também têm a missão de fazer a contenção dos indígenas, de suas pressões e demandas nas regiões".

Suicídios voltam a crescer

O relatório do Cimi volta a dar atenção a um tema de grande preocupação nos últimos anos, o índice de suicídios entre os indígenas. O total anual, que havia sido de 100 casos em 2018, cresceu para 133 no ano passado. A maior parte dos casos ocorreu no Amazonas (59) e no Mato Grosso do Sul (34).

Na série histórica desde o ano 2000, o total do ano passado só é inferior ao de 2014, quando 135 indígenas tiraram a própria vida. Desde então, o número oscilou de 87, em 2015, a 126 em 2017.

Em artigo para o relatório, Lucia Helena Rangel, assessora antropológica do Cimi e professora doutora da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, apontou que "entre os povos indígenas que habitam o território brasileiro há uma recorrência de situações violentas, pressões sociais e racismos que podem estar associados a práticas suicidas, envolvendo alguns, ou muitos, indivíduos em uma mesma localidade e ao mesmo tempo".

Ela apontou como "caso mais agudo" o vivido pelo povo guarani-kaiowá de Mato Grosso do Sul, que "no espaço de 19 anos, apresenta uma média aproximada de 45 ocorrências por ano". A pesquisadora considera "um cenário de genocídio" que atinge também terenas, kinikinaus e kadiwéus. Nos últimos 14 anos, ocorreu um suicídio a cada 7,9 dias.

"Mas é sobre o povo Guarani Kaiowá que recai a maior tragédia: uma população confinada em territórios exíguos, cujas consequências maiores são os conflitos internos, as desavenças familiares, os comportamentos violentos devido ao alto consumo de bebidas alcoólicas, o envolvimento com o mundo das drogas, estupros, roubos."

Com uma população total de 54,6 mil pessoas, de acordo com a pesquisadora, as comunidades ocupam somente 70 mil de 242 mil hectares reconhecidos como territórios tradicionais, o que resulta em 1,2 hectare por indígena.

"Isso significa mais do que limites estreitos para viver", escreveu a pesquisadora.

Além disso, os guaranis são alvo de intensas pressões e atos de violência de fazendeiros no estado. Entre 2015 e 2016, de acordo com o Cimi, foram registrados 33 ataques "de natureza paramilitar contra comunidades Guarani Kaiowá". De 2001 a 2018, 14 líderes indígenas foram assassinados "em represália às tentativas de retomar pacificamente terras já reconhecidas pelo Estado brasileiro".

No Amazonas, a incidência de casos de suicídio a partir de 2014 também "revela uma situação recrudescente". Com 302 suicídios registrados de 2000 a 2019, as áreas de maior incidência são Manaus, o Alto Rio Negro e o Alto Solimões. Nesta última região, foram 34 casos só em 2019.

Orçamento com "valores muito aquém do necessário"

O relatório do Cimi inclui um estudo de Ricardo Verdum, doutor em antropologia social pela UnB (Universidade de Brasília), pesquisador do Museu Nacional e integrante da Comissão de Assuntos Indígenas da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), sobre o orçamento e a política do indigenismo bolsonarista em 2019.

O ano de 2019 foi o último de execução do PPA (Plano Plurianual) do período 2016-2019 e o ano da elaboração do novo PPA para o período 2020-2023. A ação orçamentária "regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção de povos indígenas isolados" começou 2019 com um crédito de orçamentário de R$ 37 milhões. Contudo, apontou o estudo, foram empenhados R$ 33,5 milhões e pagas despesas no valor de R$ 23,1 milhões. "Ou seja, o que ao final foi pago representou 62,4% da dotação autorizada pelo Congresso Nacional e 68,7% do valor empenhado."

No campo da saúde indígena, a ação recebeu um crédito orçamentário de R$ 1,47 bilhão em 2019. As despesas pagas somaram, ao final do ano, R$ 1,33 bilhão. "São valores muito aquém do necessário para fazer frente ao desafio de promover e proteger a saúde da população indígena e implementar o que está estabelecido na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi)."

A política foi instituída em 2002 pelo Ministério da Saúde e deveria ter sido revisada e atualizada na 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, prevista para ocorrer em maio de 2019. "Após duas mudanças de data, este evento está sem data definida", diz o relatório do Cimi. Propostas foram coletadas regionalmente entre o final de 2018 e início de 2019 e subsidiaram dois documentos que iriam ser debatidos na conferência mas agora "encontram-se engavetados".

Demarcação zero

Cumprindo o discurso da campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro não demarcou nenhum centímetro de terra para indígenas e quilombolas em 2019. E o governo foi além. No início de 2020, 27 procedimentos de regularização de terras indígenas foram devolvidos pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, do ministério para a Funai.

O Cimi identificou um total de 829 terras indígenas com algum de tipo de pendência administrativa na União, das quais 536 não receberam providência nenhuma. Hoje no país há 408 terras indígenas com a demarcação já concluída, isto é, estão registradas em cartórios em nome da União, último movimento do processo. Ou seja, do total de terras reivindicadas por indígenas no país, 41% (ou 536) não receberam nenhum tipo de providência.

Sem nenhuma terra indígena demarcada em 2019, Bolsonaro há bateu o recorde histórico de pior presidente no quesito para os povos indígenas. José Sarney (1985-1990) homologou 67 terras; Fernando Collor de Mello (1991-1992), 112; Itamar Franco (1992-1994), 18; Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), 145; Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), 79; e Dilma Russeff (2011-2016), 21. Michel Temer (2016-2018), o segundo pior colocado no quesito, homologou apenas uma terra indígena - o processo foi suspenso por ordem judicial.

Em setembro de 2019, Bolsonaro atacou o Cimi

Em artigo para o relatório, o secretário-executivo do Cimi, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, e o secretário-adjunto, Cléber César Buzatto, disseram que o atual governo "configura uma volta ao passado, que nos localiza no período do império, com o regime baseado na autoridade central, na escravidão, na elite agrária, na dependência externa e na divisão da sociedade".

Citando diversos discursos de Bolsonaro, eles pontuaram que "a política do governo Bolsonaro traz um elemento novo que, além de ser excludente, passou a ser culposa, contra os indígenas, associando-os a seres animalizados e deslegitimando suas demandas, numa política hostil à sobrevivência dos povos indígenas no Brasil".

Mencionaram, contudo, que os indígenas e a sociedade civil organizaram formas de resistência, como a continuidade do Acampamento Terra Livre, em Brasília, que reuniu 4 mil indígenas, e a participação em espaços multilaterais de direitos humanos da ONU, em Nova York, nos EUA, e em Genebra, na Suíça. O Cimi registrou "23 manifestações públicas de autoridades em defesa dos povos indígenas".

Os autores lembraram que o próprio Cimi foi alvo da retórica de Bolsonaro. Em setembro de 2019, ele disse que o Conselho "incita os índios contra o progresso e presta um desserviço ao país".

"A fala do presidente, ao contrário da sua intenção, nos anima na segurança de que estamos no caminho certo; a sua concepção, assim como a do seu governo, de progresso e desenvolvimento exclui totalmente os povos indígenas."

Em seu texto, o arcebispo Roque Paloschi disse que "no Brasil, em 2019, se promoveu o inverso das boas práticas, das boas relações e do bom direito".

"Aqui se incentivou uma das maiores tragédias ambientais do mundo, através de incêndios criminosos, desmatamentos, loteamentos de terras indígenas, invasões de toda ordem, ameaças, espancamentos e assassinatos de líderes indígenas, quilombolas e de comunidades de pequenos agricultores, que defendiam seus territórios e a mãe natureza", apontou o arcebispo.

Órgãos do governo Bolsonaro estão sendo procurados pela coluna para comentar o relatório do Cimi e, caso se manifestem, este texto será atualizado.