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Rubens Valente

Juiz que decidiu pró-Conama e Salles quer extinguir um assentamento do MST

Trabalhadores rurais do assentamento "Osvaldo de Oliveira", em Macaé (RJ), que estão sob ameaça de despejo - MST/Divulgação
Trabalhadores rurais do assentamento "Osvaldo de Oliveira", em Macaé (RJ), que estão sob ameaça de despejo Imagem: MST/Divulgação

Colunista do UOL

04/10/2020 11h05

Resumo da notícia

  • Desembargador do TRF da 2ª Região (RJ) mencionou riscos ao meio ambiente ao ordenar que 53 famílias sem-terra sejam expulsas de assentamento do Incra
  • Na sexta-feira, o desembargador restituiu a validade de decisões do Conama que haviam anulado resoluções que protegiam manguezais e restingas
  • O Conselho Nacional de Meio Ambiente é presidido por Ricardo Salles (Meio Ambiente); decisões do Conama foram duramente criticadas por ambientalistas

O desembargador do TRF (Tribunal Regional Federal) da 2ª Região Marcelo Pereira da Silva, que nesta sexta-feira (2) restabeleceu decisões do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) defendidas pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente), já votou pela dissolução de um assentamento do Incra originado há dez anos de uma ocupação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Um dos argumentos do desembargador em seu relatório e voto, de agosto do ano passado, contra o assentamento foi uma preocupação com "a preservação ambiental da área". Ele determinou que as 53 famílias sejam despejadas do local - cabem recursos à decisão.

Sob a presidência do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente), o Conama - que teve a participação da sociedade civil reduzida por um decreto do presidente Jair Bolsonaro - no último dia 28 revogou regras de proteção a áreas de manguezais e restingas que estavam em vigor desde 2002. No dia seguinte, acolhendo o pedido de um advogado, a juíza federal Maria Ameia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal Criminal do Rio, ordenou a suspensão dos efeitos das revogações do Conama tendo em vista "evidente risco de danos irreparáveis ao meio ambiente".

A AGU (Advocacia Geral da União) recorreu da decisão da juíza. Nesta sexta-feira, o desembargador deferiu o pedido de suspensão dos efeitos da ordem da juíza, mencionando a "prevalência da já consagrada legitimidade institucional e democrática do Código Florestal", mesmo argumento apresentado pelo ministro Salles, pelo Conama e pela AGU.

Famílias já foram despejadas quatro vezes, diz o MST

O desembargador do TRF-2 ficou conhecido pelo MST no Rio de Janeiro a partir de uma decisão considerada inédita no estado. Ao relatar uma ação civil pública pela qual o Ministério Público Federal pedia que o Incra elaborasse um plano de desenvolvimento sustentável para um assentamento rural em Macaé (RJ), o desembargador foi além: mandou o Incra parar com tudo e impôs ao órgão a "obrigação de desocupar o local, com a retirada das famílias assentadas no prazo de 90 dias".

O desembargador escreveu ainda que o MPF deverá "requerer as medidas judiciais que entender pertinentes no caso de resistência dos assentados, ficando desde já autorizado a solicitar força policial e demais medidas indutivas e coercitivas que entender necessárias".

Submetido à 8ª turma especializada no TRF, o voto de Silva foi vencedor por dois votos (dele e do desembargador Guilherme Diefenthaeler) contra um (da juíza federal convocada Helena Elias Pinto). Representantes dos assentados e do Incra recorreram da decisão, que agora tem seu efeito suspenso.

Com seu voto, o desembargador reformou uma decisão da Justiça Federal de Macaé que nada falava sobre retirada das famílias.

A decisão da turma do TRF é mais um desafio enfrentado pelas famílias do MST que ocupam o imóvel desde 2010. De lá para cá, segundo o MST, elas foram despejadas quatro vezes, uma delas de forma violenta, quando seus barracos foram incendiados pela polícia.

Em 1º de setembro de 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou a área de 1,5 mil hectares, denominada fazenda "Bom Jardim" e pertencente à empresa Campos Difusora Ltda, do norte fluminense, de interesse social para fins de reforma agrária. Nascia assim o PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) "Osvaldo de Oliveira". Segundo o MST, foi o primeiro "assentamento agroecológico do Rio de Janeiro".

'Assentamento objetiva exploração sustentável dos recursos', diz o MPF

Como o imóvel se localiza numa região de Mata Atlântica, o MPF, o Incra e as famílias mantiveram diversas tratativas, com o acompanhamento da Justiça Federal de Macaé, para a criação de um projeto ecologicamente sustentável. "Trata-se de assentamento peculiar, que objetiva a exploração racional e sustentável dos recursos naturais, sem descurar o necessário respeito à diversidade ambiental local", apontou o MPF em petição ao TRF no dia 4 de setembro de 2017.

Na ação civil pública, o MPF originalmente colocou em dúvida a capacidade do Incra de "cumprir com suas obrigações", tendo em vista a "relevância ambiental da área". Depois, porém, a Justiça Federal de Macaé determinou que o Incra realizasse um Plano de Uso do PDS, com todas as licenças ambientais pertinentes, num prazo de oito meses, que promovesse uma fiscalização semestral, "aferindo a preservação ambiental e as diretrizes do Plano de Uso - quando pronto", e que também providenciasse uma formação diferenciada para as famílias assentadas, com ênfase na preservação ambiental.

Em 2017, o MPF manifestou total concordância com a decisão da Justiça, dizendo que "ela não merece reparo algum". Quando o caso chegou a TRF, sofreu a reviravolta sob a relatoria do desembargador Marcelo Pereira da Silva. Em 2015, em um processo que corre em paralelo à ação civil pública, ele deu parcial provimento a um agravo de instrumento interposto pela empresa Campos Difusora a fim de suspender a imissão de posse da área, pelo Incra, "até o exame do pedido liminar" da ação civil pública. A imissão é o ato judicial que conferiu ao Incra a posse da antiga fazenda.

A posição do desembargador Marcelo Silva

No voto de agosto de 2019 que opinou pela retirada das famílias assentadas, o desembargador Marcelo Silva reconhece que não há dúvida "que o assentamento já foi implementado pelo Incra, tendo os sem-terra se fixado na área em 2010, anos antes da autorização da imissão de posse".

Porém, disse o desembargador, "a aparente consolidação dos fatos em nada militar em favor da ultimação da desapropriação". Marcelo Silva disse que "após a ocupação da área pelo movimento dos sem-terra notou-se um grande impacto antrópico [relativo à ação do homem] na área".

O desembargador escreveu que há registros de que o Incra "não atua como deveria para garantir a preservação ambiental da área". Segundo ele, as "evidências surgidas durante o transcurso da presente ação civil pública e a prova pericial produzido naquela ação de desapropriação reforçaram a conclusão acerca do desacerto da opção do Incra e do evidente desvio de finalidade da desapropriação".

"Diante da grande limitação do terreno, o sucesso do assentamento dependeria, além da escolha criteriosa dos assentados, privilegiando aqueles com experiência em agricultura sustentável, de efetiva atuação do Incra na orientação do grupo acerca do aproveitamento racional do local e na fiscalização da área, mas sobre tais pontos não há qualquer evidência nesses autos", escreveu o desembargador. Ele condenou o Incra "a se abster de prosseguir na realização de atos dirigidos a desapropriar aquele local".

'Assentamento já vem produzindo alimentos acessíveis'

A advogada Fernanda Vieira, da assessoria jurídica do MST, disse que a perícia levada em conta pelo desembargador foi a apresentada pelo fazendeiro. Porém, segundo ela, diversos outros estudos, inclusive de universidades públicas, atestam a viabilidade econômica e ambiental do assentamento mas não foram considerados no voto do desembargador.

Fernanda disse que o desembargador "nunca pisou" no assentamento em Macaé. "Para mim é uma decisão profundamente parcializada. Ele toma o partido e não ouve nenhuma outra parte que não seja o proprietário. O projeto é modelo não só no Rio de Janeiro. O argumento do desembargador é curioso porque o pedido de retirada das famílias não está presente na ação [antes da decisão do juiz]. Ele argumenta inclusive a questão ambiental para justificar a saída das famílias. É uma tese muito particular dele. Achei absurdo quando vi que foi o mesmo desembargador que deu uma decisão favorável ao desmonte de resoluções do Conama."

Para Fernanda, não há contradição entre as duas decisões, sendo ambas "desveladoras da perspectiva ideológica que ele vem construindo". "É o alinhamento do perfil ideológico de parcela do nosso sistema judicial com uma perspectiva profundamente conservadora sobre a sociedade. O olhar que ele tem para a reforma agrária é o mesmo do atual governo [Bolsonaro] sobre os movimentos sociais."

Em nota, o MST disse que o PDS "Osvaldo de Oliveira" desde antes de 2014 "vem produzindo alimentos acessíveis à classe trabalhadora, participando de diversas feiras, locais e estaduais, tendo assim o reconhecimento da sociedade de sua importância para o desenvolvimento da qualidade de vida, não só das famílias assentadas, mas também de toda a população que tem acesso aos produtos agroecológicos oriundos do PDS".

O MST afirmou que "as famílias produzem uma diversidade de alimentos como feijão, aipim, abóbora, banana, milho, hortaliças, batata doce, inhame, taioba, guandu, fava, tomate, urucum, chaya, maracujá, caramuela, cana, temperos, leguminosas, entre outras, e estão entregando para a Prefeitura de Macaé, através da política do PNAE, cerca de uma tonelada de alimentos por semana".

'Decisão destoou daquilo que foi requerido', diz o Incra

Em embargos de declaração à decisão do TRF, o Incra também afirmou que o acórdão da 8ª Turma Especializada do TRF-2 "ultrapassou os limites da pretensão inicial" do MPF, "em flagrante ofensa ao princípio da correlação (congruência)" presente no Código de Processo Civil. "A decisão destoou daquilo que foi requerido", escreveu o procurador federal do Núcleo Ambiental e Fundiário da AGU (Advocacia Geral da União).

"O julgado em questão desconsiderou as tratativas em andamento entre o MPF e o Incra objetivando a resolução consensual do conflito, deixando assim de observar [artigos do CPC, Código de Processo Civil]. Como se pode extrair de sua exposição de motivos, o vigente CPC, ao mesmo tempo que reafirma a inafastabilidade do Poder Judiciário na apreciação de ameaça ou lesão a direito, indica que os meios de solução consensual dos conflitos têm via preferencial, devendo ser promovidos pelo Estado sempre que possível e estimulado por juízes, advogado, defensores públicos e membros do Ministério Público", afirmou o Núcleo da AGU.

No seu voto divergente do relator no TRF, a juíza federal convocada Helena Elias Pinto disse que sobre um incêndio e desmatamentos citados pelo desembargador, "não há lastro probatório suficiente para imputar aos assentados a autoria de tais condutas".

"Desconstituir o assentamento por força do impacto antrópico decorrente da ausência de direcionamento de esgoto, captação de água e coleta de lixo configura medida que ultrapassa o limite da razoabilidade, eis que tais desconformidades podem ser sanadas no âmbito administrativo, sobretudo por se tratar de projeto de assentamento ainda em desenvolvimento", escreveu a juíza.

Os recursos judiciais a serem apresentados pelas partes, tanto pelas famílias quanto pelo Incra, agora estão sob análise do desembargador. Caso ele não acolha os recursos, as partes ainda poderão recorrer aos tribunais superiores, em Brasília.