Bolsonaro fala em 'índio evoluído'; APIB e antropólogos repudiam declaração
Resumo da notícia
- Em live na internet ao lado de Ricardo Salles (Meio Ambiente), Bolsonaro disse que o índio "evoluído" deveria ter "mais liberdade sobre a sua terra"
- Liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara diz que fala é racista e "pressupõe que nós, indígenas, somos inferiores"
- Antropólogos apontam ataque a direitos indígenas, anacronismo e "versão tosca e regressiva" de ideias do século 19 já superadas pela antropologia
O presidente Jair Bolsonaro declarou, em uma live na última quinta-feira (24), que há no país um tipo de "índio evoluído" que poderia ter "mais liberdade sobre a sua terra". Procurados pela coluna, antropólogos e indígenas veem nas palavras do presidente racismo, "terminologia racista", ataque a direitos indígenas, "anacronismo", "ignorância" e "retórica colonial".
Bolsonaro deu as declarações numa live ao lado do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente). O presidente repisou um tema recorrente nos seus discursos, a sua decisão de não demarcar terras indígenas no país. Em seguida fez uma ligação obscura com os indígenas parecis de Mato Grosso. Parte dessa etnia decidiu plantar monocultura em suas terras, como soja, e fazer "parcerias" com fazendeiros em suas terras.
"Olha os índios do norte do Estado do Mato Grosso, os parecis, eles estão numa situação semelhante à nossa, plantam já, cultivam", disse Bolsonaro. Salles disse que são "doze mil hectares". Em seguida Bolsonaro passou para um terceiro tema, ao se lamuriar sobre supostas dificuldades de fiscalizar as "grandes reservas indígenas", onde "impera [sic] lá dentro desmandos, ilícitos também, roubo de biodiversidade, exploração aí predatória de, dos meios naturais que existem lá".
Por fim, expressou uma aspiração sua: "E eu gostaria que em alguns locais, né, como o índio já tá evoluído, ele pudesse realmente ter mais liberdade sobre a sua terra. Como você [Ricardo Salles] disse agora pouco, por que um fazendeiro aqui pode usar sua terra da maneira racional e pro lado de cá não se pode fazer absolutamente nada?".
Sônia Guajajara, liderança da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), disse à coluna que as declarações são "outro crime cometido pelo presidente e seus ministros". "Querem legalizar o ilegal e se baseiam em dados falsos que tem uma única fonte: o racismo."
"Dizer que o indígena está evoluindo pressupõe que nós, indígenas, somos inferiores. É a mesma visão racista dos colonizadores genocidas. Ele não aceita o fato de nós, indígenas, termos direitos garantidos pela Constituição. Demarcar nossos territórios é um direito constitucional. Não é questão de 'querer ou não querer', é um dever do presidente demarcar as terras indígenas."
'Arcaico, chulo e desinformado'
A professora emérita da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora sênior do CNPq, a antropóloga Alcida Rita Ramos, disse que falar sobre "índio evoluído" é "expor um tal grau de ignorância que, francamente, não é compatível com o cargo de presidente da República".
"'Índio evoluído' faz parte do vocabulário rude do presidente, que ainda fala em chapa de pulmão e pedra na bexiga. É arcaico, chulo, desinformado e caricatural. 'Índio evoluído' é uma aberração antropológica que instantaneamente revela o grau de indigência mental e cultural de quem assim se expressa. Mas, sejamos claros, essa retórica malandra está a serviço de uma política anti-indígena e anti-ambiental que tenta se esconder por trás de uma aparente ignorância estudada."
'Versão tosca e regressiva do século 19'
Henyo Trindade Barretto Filho, doutor em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor de antropologia da UnB (Universidade de Brasília), disse que a frase sobre "índio evoluído" pode ser entendida "como uma versão tosca e regressiva das formulações do positivismo ortodoxo e do evolucionismo social do século 19".
"Esses [pensadores] compartilhavam um pressuposto comum, apesar das postulações relativamente distintas que propunham: a de que todos os coletivos humanos evoluiriam, natural e necessariamente, por um caminho que iria da selvageria (inferior/média/superior) passando pela barbárie (inferior/média/superior) até chegar à civilização (antiga e moderna). Selvageria, barbárie e civilização seriam, assim, fases/etapas/estágios desse processo evolutivo."
Assim, propunham esses pensadores antigos, "ao observar o modo de vida de uma dada sociedade seria possível reconhecer em que estágio esta se encontraria pela presença de alguns 'traços culturais'", como os tecnológicos, ou "'suas artes de subsistência', conforme conceituou [o antropólogo] Lewis Henry Morgan (1818-1881)".
Eram então estabelecidos "indicadores clássicos do estágio de civilização", como a "vida sedentária (por oposição à mobilidade), a agropecuária (domesticação das plantas e animais) e a fundição de metais, com implicações morais tais como a família nuclear monogâmica e a religião universalista na civilização moderna".
"Não se trata de formulações baseadas em pesquisas empíricas de campo, mas de especulações de segunda ordem que caracterizam, antes, uma filosofia social de caráter etnocêntrico, pois toma como parâmetro de civilidade o estilo de vida euroamericano ocidental daquela época [século 19]", disse Barretto Filho.
Tais ideias, explica o antropólogo, estão na origem da "constituição do ideário do apostolado positivista no Brasil, sob cuja influência ideológica foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910". O órgão é o antecessor da Funai (Fundação Nacional do Índio), fundada em 1967.
"Uma das ideias centrais desse grupo de intelectuais era que 'índio' era uma condição transitória, que natural e necessariamente seria superada, competindo à autoridade laica - o Estado - atuar para que tal evolução ocorresse de modo não-traumático. Daí todo o esforço de 'pacificação' e 'sedentarização' (o nomadismo era visto como uma excrescência moral e criminalizado) das 'hordas nômades fetichistas', seguida do ensino dos cultos cívicos e das técnicas agrícolas. O objetivo era converter o 'índio' - à época também referido como 'silvícola' - em 'trabalhador nacional'', explica o antropólogo.
Para Barreto Filho, Bolsonaro ecoa essas ideias sem saber sua origem, sendo ele "um iletrado que sequer sabe da existência de O Ramo de Ouro de Frazer, A Sociedade Antiga de Morgan, A Cultura Primitiva de Tylor, ou o Curso de Filosofia Positiva e o Catecismo Positivista de Comte".
"Esses autores eram intelectuais estabelecidos no seu tempo, que liam, estudavam e debatiam em circuitos acadêmicos e na esfera pública. Trata-se [a fala de Bolsonaro] de uma variante regressiva, pois aqueles pensadores não duvidavam da unidade do gênero humano e, por definição, não eram racialistas; ao passo que Bolsonaro e seus partidários reiteradas vezes subestimam a humanidade dos povos indígenas - 'cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós' - quando não os animalizam - "índios em reservas são como animais em zoológicos" - considerando como agricultura (como evidencia o diálogo com Salles na live) apenas o monocultivo mecanizado praticado em pequena parcela do território Pareci."
A moderna antropologia social, disse Barretto Filho, há mais de um século se constitui "como uma crítica ao paradigma evolucionista social e ao etnocentrismo".
'Formulações insustentáveis e inaceitáveis'
Citando o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Barretto Filho disse que a antropologia social "olha para a diversidade das culturas humanas como estando atrás de nós (no passado), à nossa volta (no presente) e à nossa frente (no futuro)".
"Como diz o autor [Lévi-Strauss]: 'a única exigência que podemos fazer valer a [respeito da diversidade das culturas humanas] (exigência que cria para cada indivíduo deveres correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras'. Esta postura visa, justamente, superar o etnocentrismo, razão pela qual as formulações de Bolsonaro são, pura e simplesmente, insustentáveis e inaceitáveis."
As declarações de Bolsonaro, diz o antropólogo, ecoam "o evolucionismo social e o positivismo ortodoxo de modo tosco e regressivo", e por isso "são etnocêntricas e tangenciam o racismo, pois subestimam a humanidade dos indígenas, quando não os animalizam, e tomam como parâmetro de civilidade alguns traços socioculturais característicos do nosso modo de vida - que, por sua vez, emula o estilo euroamericano ocidental contemporâneo".
'Retórica visa reduzir direitos constitucionais dos indígenas'
O antropólogo francês Bruce Albert, doutor pela Universidade de Paris X (Paris-Nanterre), pesquisador e professor visitante da Universidade de Brasília, que atua junto aos yanomâmis desde a década de 70, concorda que o "adjetivo 'evoluído' remete obviamente à surrada retórica colonial do evolucionismo social/cultural do século 19".
"Os índios seriam 'primitivos', fósseis vivos de uma trajetória da Humanidade conduzindo-os das trevas selvagens até à Civilização (nós, isto é, o homem branco, burguês). Trata-se obviamente do uso de uma terminologia racista totalmente anacrônica", disse o professor. Anacronismo, de acordo com os dicionários, é um erro de cronologia, quando uma pessoa emprega conceitos de uma época para analisar um outro tempo.
Albert observou que ainda mais "inquietante" é a segunda parte da declaração de Bolsonaro, de que os indígenas deveriam ter "mais liberdade sobre sua terra".
"Conhecemos esta ladainha do tempo da ditadura: em 1978, a sociedade civil brasileira se mobilizou em massa contra um projeto dos militares de, supostamente, 'emancipar' os índios ditos 'aculturados' e, em realidade, de permitir o cancelamento dos direitos territoriais e culturais coletivos de uma grande parte dos povos indígenas do país", disse o antropólogo.
Ele menciona o projeto que o Ministério do Interior da ditadura formulou em 1978, segundo o qual seria dada uma "emancipação" às etnias que fossem consideradas "aculturadas". A partir daí, os índios poderiam receber títulos sobre suas terras e até mesmo vendê-las - hoje as terras indígenas são registradas nos cartórios em nome da União. O projeto acabou arquivado pela ditadura após uma grande mobilização da sociedade civil.
Na época, lembra Albert, a ditadura militar "inventou até 'critérios de indianidade' de um racismo e inépcia estonteantes para identificar os 'aculturados'".
"Bolsonaro usa uma retórica colonial mais retrógrada que a dos militares dos anos 70 (que tomavam a precaução de se referir à uma teoria antropológica, ainda que totalmente obsoleta: a teoria da aculturação americana dos anos 1930), porém com a mesma finalidade: distinguir os índios 'primitivos' dos 'evoluídos' (ou 'aculturados') e assim poder negar a estes últimos os direitos coletivos reconhecidos aos povos indígenas na Constituição. Vimos recentemente uma aplicação concreta desta estratégia na pandemia: a recusa de incluir os doentes e óbitos dos índios urbanos pela Covid-19 nas estatísticas da Sesai (e de propiciar atendimento a eles pela Sesai)", disse Albert, referindo-se à Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde.
"Sob o pretexto de 'liberação' dos 'índios evoluídos/aculturados', essa retórica inspirada na ideologia militar da ditadura visa, em realidade, reduzir os direitos constitucionais de boa parte dos povos indígenas no Brasil. Não seria surpreendente que uma nova versão do famigerado projeto de 'Emancipação' dos índios (leia-se das terras indígenas) de 1978 ressurja em breve no governo Bolsonaro, de uma maneira ou de outra", afirmou o antropólogo.
'Sem amparo no consenso científico e na legislação'
Para Daniela Fernandes Alarcon, doutora em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mestre em Ciências Sociais pela UnB (Universidade de Brasília), "a noção de que certos grupos seriam mais ou menos 'evoluídos' não encontra qualquer amparo no consenso científico vigente e tampouco na legislação brasileira ou nos acordos e tratados internacionais".
Ela também apontou a origem dessa formulação no século 19, quando a antropologia "se orientou por paradigmas evolucionistas, fortemente marcados pelo colonialismo".
"Hoje, ela [antropologia] oferece um sólido aparato para evidenciar o racismo da afirmação de Bolsonaro. A Constituição Federal de 1988 superou o entendimento presente no Estatuto do Índio, de 1973, que pensava os povos indígenas segundo 'graus de aculturação', isto é, concebia a sociedade brasileira a partir de expectativas homogeneizantes e tratava a diversidade de modos de vida como um problema a ser resolvido."
Sobre a suposta maior liberdade dos indígenas sobre suas terras, Daniela disse que o argumento é "perverso", pois ao mesmo tempo Bolsonaro "descumpre sua responsabilidade de demarcar as terras indígenas".
"A garantia dos direitos territoriais é a condição básica para a autonomia desses povos. Além disso, a fala aciona uma imagem recorrente no senso comum, que é absolutamente falsa, de que os indígenas não produzem. As relações de territorialidade dos povos indígenas são complexas e diversas, e a pecha de 'preguiçosos' ou 'indolentes' tem sido acionada, historicamente, para usurpar suas terras e explorar sua mão de obra."
Para a antropóloga Alcida Rita Ramos, um "'índio" é tão 'evoluído', onde quer que esteja, como qualquer outro membro do gênero Homo sapiens".
"Só que alguns humanos são mais sábios que outros. É o caso dos povos indígenas das Américas, a começar pelos habitantes da Amazônia, cujos ancestrais construíram aquela floresta com toda sua imensa diversidade. A arqueologia contemporânea demonstra claramente esse processo ao longo de milênios, mas a Amazônia e seus habitantes vêm enfrentando o desvario de aventuras que já mais do que se provaram desventuras catastróficas."
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